Sunday, August 02, 2009

Férias do blog

A quem visita este blog, estou tirando férias por algum tempo.

Saturday, August 01, 2009

Martírio filosófico

"O homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor de legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar pra si, no além, excelentes bens quando estiver morto". Platão, Fédon, 64a.

E depois dizem que razão e fé são incompatíveis.

E são mesmo.

Friday, July 31, 2009

Bat-porcaria (2)

Lembrança póstuma: Protágoras, o sofista, dizia que μένις (cólera) e πήληξ (capacete) são masculinos (Aristóteles, Dos Argumentos Sofísticos, 173 b 20).

Então está explicado.

Wednesday, July 29, 2009

Bat-porcaria (1)

Apesar de ter alguma simpatia pelo gótico, sempre detestei o Batman. Na verdade, detesto todos os super-heróis, de Superhomem e Hulk a Indiana Jones. Acho intoleráveis esses tipos mascarados e vingadores, que acabam virando defensores dos seres humanos destituídos de poderes, inteligência e força. Para piorar, a um super-mocinho, um super-vilão ainda mais insuportável, cheio de desejo de matar, matar, matar, desde que o faça de modo sofiscado, para dar ao mocinho a chance de escapar.

Pois bem.

De tanto me indicarem, tomei coragem para assistir ao novo Batman, de Christopher Nolan. "O melhor de todos", segundo a propaganda. Sem dúvida melhor que o primeiro, que um dia me atrevi a assistir. Minha impressão deste primeiro filme do Batman, com Michael Keaton, é que ele redefiniu o ridículo. De tão ruim, chega a ser constrangedor. Ah, sim, Jack Nicholson era o coringa. Mas, pelo amor de qualquer coisa, o que há nesse tal Coringa que agrada tanto? Alguém pode me explicar esse fascínio por um personagem tão opera buffa? Tão tipo, tão linear?

O fascínio por essa coisinha chamada Coringa é tão grande que Jack Nicholson chegou a avisar Heath Ledger, o novo Coringa, para tomar cuidado com a personagem. O que é isso? Loucura coletiva? Heath Ledger morre, e eis a maldição do Coringa!

Compreensível. Já faz tempo que Howard Carter encontrou Tutankhamon.

Enfim. Eu já não gostava do Batman, como disse, e não vi nada de novo em Batman - O cavaleiro das Trevas, exceto um detalhezinho, sintoma dos novos tempos: o herói atropela a ética para fazer o bem. Ao menos isso servirá como exemplo em aulas de ética para adolescentes. Pode-se perguntar qual é o limite da ética, e se ela eventualmente contradiz a si mesma. É preciso, às vezes, escolher entre o certo e o certo, hierarquizando, priorizando valores? Neste caso, a ação escolhida pode ser considerada ética?

Já estou até imaginando a aula: Batman devia matar o cachorro? Sim!

É correto matar alguns, ou deixar morrer, para salvar muitos? Sim!

É correto torturar para obter informação? Sim!

Falando sério, o pior de Batman é que ele representa a truculência policial em sua luta contra o crime. Desde que o fim pretendido seja nobre, os meios são no mínimo toleráveis.

Policiais devem adorar o Batman.

No mais, Gotham City é depósito de lixo humano e concreto. Talvez por isso agrade tanto: é o faroeste urbano, onde tudo se resolve à bala pós-guerra fria, munida com sensor para não errar o alvo. E, claro, muita testosterona.

Moral da história? Só a tecnologia salva.

O resto é efeito especial.

Agora, por favor, parem de me indicar esse filme.

Friday, July 24, 2009

Verdade ou verdades?

Se me perguntassem onde arrumo tempo para assistir a seriados, eu não saberia dizer.

Talvez fosse mais apropriado perguntar por que assisto a seriados, mas eu também não saberia dizer.

De qualquer forma, depois de assistir a todas as temporadas de CSI Las Vegas e CSI Miami e uma de CSI New York, cansei desse tipo de programa.

Eu sei, demorou.

Mas tudo bem. Antes tarde que nunca.

De todo modo, saí dessa experiência com duas impressões fortes: a primeira é que a velha idéia de verdade empírica, meio fora de moda, meio desacreditada depois de Popper, voltou com força total. Nada é mais verdadeiro que um teste de DNA; nada é mais eficiente que a medicina forense.

Antes que alguém me acuse de tentar transformar a fantasia em realidade, lembro que, nesse caso, essa verdade empírica é ao menos idealmente a rotina das investigações policiais, o que já diz muito. A diferença, hoje, é que a tecnologia emprestou a essa rotina um caráter de verdade definitiva, como se não fossem necessários seres humanos para sintetizar os dados empíricos.

O segundo ponto é uma consequência natural e óbvia do que disse antes: o lugar do sujeito na investigação, já que foi tirado dele o lugar que lhe restou, o de intérprete desses dados. O sujeito desapareceu sob a tecnologia, sob a verdade empírica. O sujeito é aquele que deve se calar, aquele que não tem e não pode ter nada a dizer diante da verdade empírica. É o detalhe técnico que detém a verdade do sujeito que, neste caso, é o resto, aquilo que sobra da verdade não passível de revelação pela técnica.

Tuesday, July 21, 2009

Onde está o Kierkegaard de Adorno?

Sempre que leio a respeito da Escola de Frankfurt, sejam livros, artigos qualificados ou resenhas, encontro uma lista de pensadores que influenciaram a escola: Kant, Hegel, Marx e Freud.

Nunca, em momento algum, encontrei nesta lista o filósofo Kierkegaard.

Quando muito, há artigos especializados sobre a relação - estreita - entre Adorno e Kierkegaard, mas que são ignorados.

Lembro de uma discussão, num curso que fiz, sobre que pensador teria exercido maior influência sobre a escola, se Marx ou Freud. Não interferi na discussão, mas apostaria minhas fichas em Kierkegaard, até porque a estrutura do ego em Freud já estava antes em Kierkegaard. Ou seja, Freud e Adorno beberam da mesma fonte.

Este é um assunto para um trabalho mais cuidadoso, mas a semelhança é espantosa. Quando Adorno fala em tédio, raiva, ressentimento, inveja, isso tudo já está em Kierkegaard. Quando fala da publicidade como princípio unificador negativo, essa expressão, exatamente desse modo, está no filósofo dinamarquês. Quando se refere a um poder abstrato que captura a subjetividade, eis Kierkegaard novamente. Quando fala de uma cultura de superfície, de manuais e livros de auto-ajuda, lá vem Kierkegaard. Quando diz que o público é nada, ei-lo de novo. Cultura que na verdade é administração? Quantitativo em lugar do qualitativo? Kierkegaard.

Crítica social do ponto de vista da comunicação de massa? Kierkegaard (aliás, o primeiro).

A lista pode ser ampliada, mas não é necessário.

Tenho uma teoria sobre esta falta: ninguém conhece realmente a obra de Kierkegaard, e menos ainda o artigo que mais influenciou Adorno, The Present Age.

Mesmo assim, basta ler a biografia de Adorno para saber que escreveu dois livros sobre Kierkegaard. Só isso já devia ser suficiente para incluí-lo na lista das referências teóricas relevantes.

Ou não?

Sunday, July 19, 2009

Ainda sobre Indústria Cultural

Escrevi neste espaço, há algumas semanas, que encontro frequentemente um entendimento do conceito de Indústria Cultural que julgo equivocado.

Esse post gerou alguns comentários. Chamo a atenção para um deles, em que fui informada de que uma doutora em Adorno dizia que a Indústria Cultural nos faz comprar sapatos. Assisti ao video e de fato a afirmação está lá, não exatamente com relação a sapatos, mas no sentido que me foi indicado.

Como não sou especialista em Adorno, preferi ir à fonte e checar minha compreensão, que simplesmente insistir nela.

Bem, reli "A Indústria Cultural", o "Resumé sobre Indústria Cultural" e o "Sobre a Música Popular" e insisto: indústria cultural não diz respeito a sapatos, celulares, roupas etc. Trata-se da apropriação de "produtos" artísticos e do engenho humano pela lógica do capital. Em outras palavras, trata-se de oferecer ao público mercadorias culturais, no sentido restrito (repito: música, cinema, literatura), que não são materiais, e sim simbólicas.

Vender sapatos, celulares, roupas, carros, e utilizar a propaganda para isso, é o que a indústria tradicional faz. Ela nos torna consumidores, ela transforma o sujeito em consumidor. Isso não é IC; é a essência da sociedade capitalista, que faz com que qualquer coisa seja potencialmente mercadoria, e só tenha valor como mercadoria.

Adorno extrai dessa lógica a sua apropriação da arte e da cultura. Essa é a Indústria Cultural. É parte do sistema capitalista e funciona na mesma lógica, mas seu produto é outro. A Indústria Cultural não vende sapatos simplesmente. Quando muito, vende produtos materiais relacionados a produtos culturais, porque é um sistema que integra horizontal e verticalmente, mas o que ela produz, divulga e vende nem mesmo é o filme, a literatura barata ou a música ligeira. O que se vende e se compra, no fim das contas, são ideologias.

Friday, July 17, 2009

O homem no uniforme (2)

Eu ainda teria muito o que dizer sobre o filme "A última Gargalhada", de Murnau, mas optei por um comentário breve, a partir de Kierkegaard.

Kierkegaard dizia que, quando alguém desmaia, grita-se: "Água! Água de Colônia! Gotas de Hofmann!"

Mas, diante do desesperado, grita-se: "Possível, possível! Só o possível o pode salvar!

Diante do desespero da personagem principal do filme, e da impossibilidade de lhe oferecer o possível, Murnau lhe oferece o impossível.

Parodiando Kierkegaard: "Perante alguém que desespera, grita-se: impossível, impossível! Só o impossível o pode salvar!"

Vamos fazer de conta que há saída para o desesperado.

Wednesday, July 15, 2009

O homem no uniforme (1)

Definitivamente, Murnau era um gênio.

Ontem, assisti a Phantom. Hoje, vi The Last Laugh, A última gargalhada, e gostei ainda mais que do anterior.

Phantom é tão idealista quanto seu personagem principal. The Last Laugh é realista, denso, triste, pessimista, depressivo. Mesmo o final, que comentarei mais à frente, trai seu propósito declarado, que é o de transformar um desfecho inevitavelmente deprimente em algo redentor.

A primeira característica marcante de A Última Gargalhada é a ausência de textos explicativos e ordenadores da história. Há uma carta lida, absolutamente necessária para a boa compreensão do enredo, mas é só. No mais, toda a história é contada unicamente por imagens, o que nos obriga a um esforço extra de compreensão. Quase ao final há um texto explicativo, mas que oferece uma virada na história.

Lembrei, enquanto assistia ao filme, de ter lido em algum lugar que Arnheim considerava o cinema mudo superior ao falado por sua capacidade de apresentar abstrações, perdida com o acréscimo do som. Neste filme de Murnau, sem o auxílio dos textos explicativos, essa capacidade de abstração é exigida o tempo todo. O filme impressiona a começar por esta característica. Não há som, não há texto, mas as imagens são eloquentes, em uma história coerente do começo ao fim.

Uma outra característica importante de A Última Gargalhada é que as personagens não têm nome, o que está acordo com a ausência de textos, mas também tem um propósito específico: sem nome, as personagens são apenas uma função; suas identidades se confundem com o que fazem, ou com o lugar onde vivem, e é exatamente por aí que começo a contar a história.

O porteiro de um hotel de luxo, já de certa idade, orgulha-se de ser o que é, e credita seu valor a essa função. É apenas um porteiro, mas no cortiço onde mora é tratado como alguém importante, que trabalha em um lugar importante e usa uniforme de gente importante. Seus dois únicos prazeres na vida são servir aos clientes importantes e caminhar de uniforme pelo cortiço em que vive. Amando-se no uniforme, ele caminha como se fosse um dos clientes do hotel em que trabalha, ou um general chegando em casa depois de cumprida uma missão muito importante.

A partir desse ponto, spoilers. Alguém se importa?

Infelizmente já não é tão novo, e não tem mais o fôlego e a energia que seu trabalho exige. Infelizmente, também, é visto pelo gerente do hotel em um momento de fragilidade, quando tem de se sentar para recuperar as forças. Como resultado, é dispensando da função de porteiro, cartão-postal do hotel, e conduzido à função degradante - e oculta - de limpar banheiros. Antes, era a primeira pessoa que todos viam ao chegar ao hotel. Agora, é alguém que ninguém vê, que ninguém quer ver, que ninguém sequer olha.

Vai-se embora a função importante, e com ela o uniforme bonito, sinônimo de respeitabilidade, de identidade, de nobreza e de valor. Mas o uniforme é o homem. Devolvê-lo significa perder a referência. Significa também chegar em casa sem ele.

Quando tem de devolver o uniforme, o porteiro, que antes andava olhando para o mundo de cima para baixo, agora mal consegue andar, inclinado, claudicante, carregando o peso do mundo nas costas. Sem o uniforme, não é mais um homem; perdeu sua humanidade. Antes era tudo. Agora, é nada.

A trajetória da personagem segue em linha descendente. O fim é previsível: o porteiro morre, com a vida se exaurindo pouco a pouco nos banheiros que lava, no desprezo dos vizinhos, na piedade da família, no anonimato de sua nova função.

E então, a supresa final, que Aristóteles chamaria de peripécia, a reviravolta na história: sabemos que o homem vai morrer como verme, quando não pode mais nem viver nem morrer como homem. Sabemos disso muito bem, mas vamos conceder a ele a única saída possível, já que até mesmo a esperança se perdeu. Vamos conceder-lhe o inverossímil, o que a história não autoriza, o que a realidade não permite: vamos conceder-lhe a riqueza inesperada, a redenção da pobreza infinita pela riqueza infinita, a redenção da fome pelo banquete de reis, a redenção da desigualdade social pela benevolência, a redenção da injustiça pela justiça.

Por que não?

Se a vida não permite nada disso, ao menos a fantasia permite. E o que é o cinema, senão fantasia?

Esta é a última gargalhada.

Como disse inicialmente, este desfecho improvável trai deliberadamente o seu propósito, mas isso é assunto para outro momento.

Tuesday, July 14, 2009

Vida e morte de um fantasma

Assisti hoje a Phantom, de Murnau. Fantástico.

É difícil para mim, que não tenho um olhar "clínico" sobre o cinema, separar o diretor da narrativa. Murnau não é o autor da história, uma obra literária, e não li o livro, mas suponho que o modo como a conta seja em boa parte responsável por sua força dramática.

Lorenz, um rapaz pobre, sem perspectivas além de um futuro medíocre como funcionário público, é consciente disso e busca refúgio na literatura, tanto como leitor quanto como autor. Quer ser poeta, mas lhe falta talento. O espírito romântico e sonhador, no entanto, o torna vítima de seus desejos. Lorenz não quer, como a irmã, ascender socialmente; ele quer apenas correr atrás de sua fantasia, torná-la real. Por sua obsessão, toma uma série de decisões erradas, pelas quais terá de responder legalmente.

O evento que marca a mudança em Lorenz é um atropelamento, que o coloca em contato com uma jovem rica, bela e inacessível, o fantasma do título. Veronika é um fantasma no sentido psicanalítico, fetichizada, transformada em objeto sagrado cuja posse teria o efeito de preencher um vazio existencial. Ela o faz por sua ausência, por sua inacessibilidade, com uma força que quase o destrói. Veronika é a expressão desse vazio, algo que ele precisa conquistar para se sentir pleno, e cuja falta é sentida como presença. Veronika é a presença não-presente, a irrealidade que comparece como toda a realidade possível.

Lorenz tenta escapar de sua miséria emocional e intelectual, abstrata, lançando-se numa procura pelo Graal, pela salvação na posse do sagrado, do ideal. Como Parsifal, perde-se na procura, que não é outra senão a de si mesmo. Como Parsifal, tolo e idealista, é passível de se reencontrar na perda do sagrado.

Melanie, sua irmã, tenta escapar da miséria material pelo imediato, pela busca de conforto material que, julga, a prostituição lhe trará. Ambos se perdem e têm como resultado de suas escolhas a potencialização daquilo de que tentavam desesperadamente fugir. Mas Melanie busca a saída materialista; não há idealismo nela. Por isso, sua história é descendente. Lorenz, ao contrário, é idealista, e suas escolhas o levam à cadeia, mas também ao autoconhecimento. O menino Parsifal, que quer encontrar o Graal, agora é um homem que precisa contar sua história para expiar seus pecados e se reconciliar com suas perdas.

É possível ver a mão de Murnau na carruagem branca, fantasmagórica, que Lorenz visualiza sempre que tem de se decidir entre continuar sendo o que é ou dar mais um passo em direção ao que não quer ser.

A cena de Lorenz atormentado, caminhando pela cidade vazia, os prédios se inclinando sobre ele como se quisessem sufocá-lo, as sombras o perseguindo, é antológica.

Independentemente da história contada, a força narrativa de Murnau é de fato extraordinária.

Monday, July 13, 2009

O que M. Jackson não foi

Michael Jackson foi muita coisa. Cantor, dançarino, showman, freak, símbolo da cultura pop, negro e branco, pobre e rico, mas nunca foi Michael Joseph Jackson.

Michael Jackson nunca foi a pessoa Michael Jackson, o ser humano por trás da figura pública. Ele sempre foi o que não era, o que ninguém deve ser: a sua imagem pública.

O problema com Jackson é que ele era só isso. Sua personalidade foi construída a partir do que não era, sua humanidade foi construída a partir de categorias que não fazem parte do ser.

André Bazin dizia que a mumificação, a fotografia e o cinema são uma tentativa de salvar o ser pela aparência de ser. Michael Jackson é sua melhor expressão.

Sunday, July 12, 2009

Jackson e a posteridade

Que me perdoem os fãs, mas não acho que Michael Jackson tenha sido um grande artista. Cantava no tom, mas não tinha boa voz. Prince, Smokey Robinson, George Benson e Terence Trent D'Arby têm vozes bem mais bonitas e eficazes. De um modo geral, são mais talentosos.

As músicas de Jackson são banais, feitas para vender, e o pior de sua carreira é o começo no Jackson Five, com canções que poderiam perfeitamente ter sido gravadas por Christian, sem o Ralph. A qualidade é a mesma. Claro, era uma criança, e gostamos de crianças, especialmente as que julgamos mais capazes que muitos adultos.

A dança é em grande parte copiada de James Brown e do break. O gritinho famoso é de James Brown.

Com exceção de Thriller, não há nada de novo no repertório de MJ.

Nem mesmo a capacidade de transformar a si mesmo em mercadoria rentável é mérito só dele, embora tenha dado sua parcela de contribuição. Mas, ainda que esta capacidade possa ser considerada um mérito, certamente não é mérito artístico.

Ninguém vendeu tanto quanto Jackson, no auge da indústria cultural, mas o grupo The Monkees, dos anos 60, absolutamente fake, fez um sucesso enorme com o projeto curioso de ser contra-cultura, uma espécie de lado B dos Beatles.

Já nos esquecemos dos Monkees, e dificilmente nos esqueceremos de Michael, em parte por causa de suas esquisitices, em parte porque ele esteve presente na mídia por mais de quatro décadas, em parte por sua capacidade de nos inspirar pena, em parte ainda por não sabermos realmente quem ele era.

Como a qualidade artística é frequentemente confundida com critérios quantitativos, é bem provável que ele vá para a posterioridade como o maior talento da música pós-Elvis, o que não é.

Saturday, July 11, 2009

Porcos hollywoodianos

Estava ouvindo minha lista interminável de mp3, e eis que encontro Three Little Pigs, da banda Green Jelly. Já não me lembrava mais da existência da música, mas sempre que a ouço me divirto com a história dos três porquinhos e do lobo malvado.

É uma metáfora, e aí está a graça. O primeiro porquinho, que sempre viveu em uma fazenda, compra uma guitarra e vai para Hollywood, sonhando se tornar uma estrela do rock. Mas, como não conhece a vida na cidade, constrói sua casinha com palha. O lobo aparece, quer entrar, o porquinho debocha da intenção do lobo e a casa vai abaixo com um sopro.

O segundo porquinho quer mais é sombra, água fresca, marijuana e Bob Marley. Constrói sua casa com lixo, seu habitat natural. E então vem o lobo mau e a sequência se repete: o lobo pede para entrar, o porquinho debocha, a casa vai abaixo com um sopro.

Por fim, o terceiro porquinho é sabichão, filho do grande astro do rock Pig Nugent, arquiteto formado em Harvard, entendido de casas e lobos. Constrói uma casa de concreto de três andares, na colina de Hollywood, com muros altos, câmera e tudo que a tecnologia proporciona de conforto e segurança. O lobo aparece, tenta derrubar a casa no sopro e não consegue, mas não desiste. Então o porquinho sabido liga para o 911 e eis que vem o Rambo para salvá-lo.

Pronto. O lobo está perdido.

Moral da história?

"Bandas sem talento algum podem facilmente divertir idiotas com um show de bonecos imbecil".

Será uma referência ao Iron Maiden e seu Ed The Monster?

Será auto-crítica?

Será que devo vestir a carapuça?

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Vou ficar só com a parte, digamos, elegante da história, mas que fique registrado: é tudo bem mais complexo. :-)))

Acredite, isso é música. Do álbum Cereal Killer, de 1992. Com direito a indicação ao Grammy.

Friday, July 10, 2009

Sobre Michael Jackson

Em breve a multidão irá para casa com uma predisposição ainda mais séria para a mais respeitável de todas as doenças: admirar no que é público o que não tem importância no privado.

Kierkegaard, The Present Age.

Explico: admirar a publicidade ou, se se quiser, a celebridade, apenas por ser celebridade, o que não tem realmente importância alguma na vida de seu ninguém, mas parece importante.

Thursday, July 09, 2009

Unreal-ity Shows (3)

Outro Reality Show: Celebrity Paranormal Project. Clique no título para assistir a um episódio.

Um grupo de "celebridades" enfrenta casas assombradas, com o propósito de provar que são de fato assombradas. Quer-se provar aquilo que de antemão já se tem como certo.

Desfecho natural: em todos os episódios os participantes, até os mais céticos, saem de lá apavorados, sem provar nada, sem acontecer nada, mas com a certeza de que o lugar é mesmo assombrado.

Estão todos apavorados. Pronto, provou-se a tese.

Os céticos converteram-se ao medo. Pronto, provou-se a tese.

Wednesday, July 08, 2009

Unreal-ity shows (2)

Ateus, incrédulos e descrentes do poder do Reality Show, esta é para vocês! Façam suas apostas: imã, rabino, sacerdote da Igreja Ortodoxa Grega ou monge budista? Quem será o mais persuasivo? Que religião você quer ter, com o bônus de ter sua conversão transmitida em rede nacional (da Turquia) e quiçá internacionalmente?

Vai perder essa chance?

Bem, lamento dizer, mas é para poucos. Primeiro, há poucos ateus. Segundo, os ateus que vão participar do Reality Show que tentará convertê-los a uma religião serão escolhidos cuidadosamente, o que exclui a grande maioria. Terceiro, os escolhidos deverão ter o desejo sincero de ganhar o prêmio, ao final do programa, quando se converterem. Exclui quase todos os interessados, claro.

Quem não quer ganhar o prêmio?

Quem quer perder, depois de chegar lá?

Ninguém, claro. Ou vamos começar a acreditar no choro que sucede à revelação da própria estultícia, ou da má-fé?

Há sempre a possibilidade de haver um ateu ansioso para se converter, claro. Mas então não será ateu; apenas terá o perfil adequado.

Em qualquer caso, o show terá o resultado esperado: provará aos convertidos de todo o mundo que todo ateu que se preze quer mais é ficar rico, famoso ou assumir que no fundo é tudo ressentimento, superado com um belo choro diante as câmeras de TV. E fará uma multidão de crentes dizer: "eu não disse?", "eu não disse?"

Tuesday, July 07, 2009

Unreal-ity shows (1)

Toda vida privada será pública por 15 minutos, já dizia o profeta Andy Warhol que, num rasgo de raro brilhantismo, antecipou a Internet e os Reality Shows.

Como estou tentando de todos os modos fugir do trabalho inevitável, resolvi fazer uma lista dos assuntos que, surpreendentemente, viraram shows que não vi e não gostei:

Caminhoneiros do gelo
Ozzy Osbourne
Gene Simmons
Trabalho sujo
Reforma de casas
Restauração de carros
Casas mal-assombradas
Controle de dieta
Moda
Spa
Trocas de famílias
Lenhadores
Caçadores de OVNI's
Ajuda para cães rebeldes
Ajuda para pais adolescentes de adolescentes rebeldes
Ajuda para pais estressados de crianças hiperativas
Rotina de hospitais
Rotina policial
Rotina de bombeiros
Fazenda
Situações de quase-morte

Esqueci alguma coisa? Tudo bem, não tem importância.

Parodiando Stéphane Mallarmé, em Outono:

"A vida é triste e já vi todos os Reality Shows, todos".

Não vi, mas nem precisa. A sensação é a mesma.

Monday, July 06, 2009

A César o que é de César

A primeira obra inglesa boa (...) foi o Ancient Mariner, de Coleridge, publicada em 1799. No ano seguinte, tendo, infelizmente, recebido fundos dos Wedgwoods, [Coleridge] foi para Göttingen e mergulhou em Kant, o que não melhorou sua poesia. Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, vol. 3, p. 232.

Não conheço a poesia de Coleridge, mas não tenho dúvida de que a Crítica do Juízo e especialmente a Crítica da Razão Pura não ajudam ninguém a ser melhor poeta.

Ainda bem.

Sunday, July 05, 2009

É o Michael! É o Michael! (2)

Tava demorando.

Depois de aparecer em uma torrada, em 2005, durante o julgamento em que era réu, agora o fantasma de Michael anda rondando Neverland.

Nada de novo sob o sol. Neverland, Camelot, Graceland. Americanos gostam do simbólico e, mais particularmente, de fantasmas.

Iam perder a chance?

Never...

land.

Saturday, July 04, 2009

Religião filosófica

A filosofia é uma religião que nos obriga a cuidar dos pobres, doentes e oprimidos.

Charles Baudelaire, Ensaios Estéticos.

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Pobres de espírito.

Doentes da ignorância.

Oprimidos socialmente.

Arre!

E agora? O que faço com meu orgulho ateu?

Friday, July 03, 2009

Jogo de cena

Como nem só de Griffith vive o cinema mudo, assisti hoje algumas peças de Georges Méliès, todas muito interessantes.

Que o cinema narrado começou com ele, é sabido, mas deve ter sido também o primeiro a criar efeitos especiais, uma coisa meio vaudeville, meio trompe l'oeil.

Em seus filmes objetos aparecem e desaparecem, ficam maiores e menores, movem-se sozinhos, têm vontade própria. Alguma coisa parecida com o que um mágico faz em um palco.

Deliciosos.

Thursday, July 02, 2009

O nascimento da KKK

Imagine um filme capa-espada, com heróis, mocinhas e vilões.

Imagine o mocinho clássico, imbuído de bons sentimentos, honra, amor à família e desejo de construir um mundo melhor.

Imagine a mocinha que, como boa filha que é, defende o pai e se afasta do amado por não compreender seus bons propósitos.

Imagine o vilão, um político que não hesita em fraudar eleições, em se aliar a tipos exacráveis e em fazer escolhas que sabidamente vão destruir a ordem vigente.

Agora veja: o vilão apóia a luta dos negros pela igualdade e o mocinho é o fundador da Ku Klux Klan.

A atitude interesseira do vilão acaba resultando na morte de uma mocinha branca, linda, sonhadora, amorosa e inocente, que prefere se matar a permitir que um negro a toque. A consequência imediata é a criação da KKK pelo irmão da vítima, o mocinho-herói, que luta por uma causa nobre.

Numa sucessão de eventos, a cidade é "tomada" pelos negros, que oprimem os brancos, negando a eles todos os privilégios naturais de sua superioridade ariana. Em meio a tudo isso, os brancos se unem para libertar a cidade e restaurar a paz. Em uma cena antológica, o clã invade a cidade a cavalo, atirando para todos os lados, e salva a mocinha, prestes a se casar à força com um negro.

Ordem restaurada: os negros que não são mortos são devolvidos a seu lugar natural, o de servos submissos. Os negros bons são aqueles que se conformam à sua condição inferior e lutam pela causa dos brancos. A milícia negra foge como rato assustado, diante da coragem branca. No fim das contas, tudo o que os negros queriam era casar com mulheres arianas, horror maior dos brancos.

Enfim, negros subjugados e final feliz para todos. O mocinho casa com a mocinha; o irmão da mocinha (cujo ato mais heróico foi matar um negro para salvar uma família branca) casa-se com a irmã do mocinho.

Sei que Griffith é considerado um gênio do cinema, e há muito tempo desejava assistir a seus filmes. Também acredito que uma obra de arte deva ser avaliada por suas qualidades intrínsecas, e não por razões morais. Mesmo assim, fiquei estarrecida com o filme.

Estava atenta demais à história para perceber detalhes técnicos, aqueles que tenho condição de avaliar, mas não pretendo assisti-lo novamente. É claro, há recursos interessantes no filme, como o de contar eventos simultâneos, mas fico por aqui. O filme me deu náuseas. É um legítimo capa-espada, maniqueísta, que endeusa a cor da pele, associando-a com a verdade, a legitimidade, a coragem, a inteligência, o caráter e a honra e demoniza o negro, cujo direito de votar elevou a falta de senso moral, a incompetência e a quase oligofrenia à direção de uma cidade antes próspera e feliz.

O filme é um retrato grotesco, mas fiel, de uma América que se reconhece branca, liberal, honesta, honrada e valente.

Só faltou explorar a associação histórica entre a Ku Klux Klan e o protestantismo.

Mas isso seria exigir demais de Griffith.

Wednesday, July 01, 2009

Mona Lisa nua

Já disseram que a Mona Lisa é inimitável. Já disseram que é homem. Disseram que seu sorriso é enigmático. Disseram também que é um auto-retrato.

Duchamp até lhe deu um bigode, mas ninguém havia pensado ainda em vê-la nua.

Até agora.

Clique no título deste post e confira.

Que mulherzinha feia, hein?

A original e a cópia.

Wednesday, June 24, 2009

Eu mereço

Fui bombardeada hoje com recadinhos do tipo "Deus ama você - clique aqui, aceite Jesus e tenha vida eterna".

Thanks, but no, thanks.

É vírus, com certeza.

Desisti dos emails e fui para a TV. Havia uma reportagem sobre uma romaria próxima à minha cidade. Entrevistaram um dos romeiros, e eis que ouço o brilhante argumento: "Uma família sem fé é uma família sem união, porque é uma família sem Deus, e não existe amor sem Deus. Então uma família sem fé é uma família desunida, sem amor".

Certo. Além da petição de princípio, óbvia, não conheço família unida na fé. Conheço, isto sim, famílias desunidas pela fé. Mas tá bom. Isso é generalização apressada. Vai que existe alguma família fervorosamente feliz. Sei lá. Tudo é possível.

De todo modo, e ainda tratando do post anterior, há sempre um "ex" cheio de orgulho em todo cristão fervoroso: ex-drogado, ex-prostituta, ex-gay, ex-traficante, ex-bêbado, ex-qualquer-coisa. Parece que o "ex" é pressuposto para uma conversão verdadeira: eu fui x, agora sou y.

Meio redundante, eu sei. Mas vai ver que não sou cristã porque não tenho um "ex", a não ser ex-secretária, ex-estudante, ex-funcionária pública etc.

Infelizmente nada disso me recomenda para ser um testemunho da ressurreição em Cristo.

Tuesday, June 23, 2009

Ateu convertido

Cristão convertido ao ateísmo? Não! Ateu convertido ao cristianismo. Depois de ter tido uma overdose de maconha e, claro, uma revelação.

Não sabia que era possível a overdose de maconha. Também não sabia que maconha provoca alucinações.

Vivendo e aprendendo.

Acho difícil engolir essa. Não existe ex-ateu, exceto se um carro passar em cima da cabeça, espalhar massa encefália, mas sobrar o suficiente para virar cristão.

Metáfora, tá?

Veja a página linkada no título. Contemple o belo testemunho de morte do velho homem, por overdose de maconha, e a ressurreição do novo, pela fantasia.

Haja maconha.

Sunday, June 21, 2009

Mente aberta

Manter a mente aberta é uma virtude - mas, como o engenheiro espacial James Oberg disse certa vez, ela não pode ficar tão aberta a ponto de o cérebro cair para fora.

Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios, p. 188.

Saturday, June 20, 2009

De Wilde

A aversão do século XIX pelo Realismo é a fúria de Caliban ao ver a sua cara ao espelho.
A aversão do século XIX pelo Romantismo é a queixa de Caliban por não ver a sua cara ao espelho.

Oscar Wilde - prefácio ao Retrato de Dorian Gray

Friday, June 19, 2009

Atenção zero

Encontrar emprego não está fácil, especialmente para quem não é lá muito atento.

Um dos supeitos de roubar uma van no Rio esqueceu o currículo dentro da van.

A descrição pessoal garante que o candidato é "educado, de fácil trato, tem facilidade de trabalhar em equipe, muita vontade de crescer profissionalmente e disponibilidade de horários".

Só esqueceu de dizer que é esquecido.

Wednesday, June 17, 2009

Indústria Cultural?

Encontro com tanta frequência uma interpretação errônea do termo Indústria Cultural, de Adorno e Horkheimer, que comecei a me perguntar se o engano não é meu. Fui conferir e não é. Ou, se for, continuo no erro, porque é como percebo.

Explico.

O que ouço frequentemente dentro da academia é que a Indústria Cultural nos faz consumir, sem pensar, produtos como sapatos, celulares, bebidas, roupas da moda etc. etc.

Quando digo que isto não é Indústria Cultural, escuto a mesma explicação, dita de outro modo, junto com a alegação de que eu não entendi, que a coisa é mais complexa do que estou pensando etc. etc.

Ow, Indústria Cultural, como o nome diz, se refere à indústria da cultura - e cultura no sentido restrito: produto cultural mesmo (música, cinema e literatura, especificamente).

Não tem nada a ver com sapato, peloamordedeus!

Sapato, celular, roupa etc, são produtos de indústria, e não da IC.

É claro que a IC funciona na mesma lógica da indústria (aliás, é por isso que se chama INDÚSTRIA, tá?), mas são coisas diferentes no produto que oferecem, o ponto exato em que há confusão.

O que a IC produz é simbólico, não material, como Adorno diz. É uma apropriação, pela lógica da indústria, da arte, tranformando-a em mercadoria e o artista, em operário.

Tudo bem, é possível que eu não tenha entendido nada, já que a maioria acha que Adorno está falando de mero consumismo, e não especificamente de consumismo de "mercadorias" culturais.

Mas insisto que sapato não é cultura. Tá, é produto da cultura, no sentido mais lato possível, mas não é cultura no sentido restrito. E é nesse segundo sentido que está Adorno.

Ou não?

Tuesday, June 16, 2009

O Castelo Mal-Assombrado de Murnau

Assisti hoje a The Haunted Castle, de Murnau.

Gosto de Murnau, mas assisti primeiramente porque queria ver um fantasma. Não há. Esperei, esperei, e no máximo há um medroso tendo pesadelos com alguma coisa parecida com o Nosferatu, pelo menos nas garras. Frustrante.

A locação também não é um castelo.

A história é prá lá de implausível: há um assassinato, um suspeito que nunca é formalmente acusado e, quatro anos depois, uma reunião em que um intruso se impõe com o único propósito de revelar a trama que resultou no assassinato. A implausibilidade está na solução apresentada e em um disfarce.

Mesmo com todos esses defeitos, o filme é envolvente. Há uma atmosfera tensa do início ao fim, uma reviravolta, desconfianças que ninguém tem coragem de formular abertamente, e um grupo relativamente grande de convivas com características muito semelhantes: todos temem um personagem, de que falam às ocultas mas fingem respeitar, todos querem apenas uma boa desculpa para ir embora, mas continuam ali e todos têm medo de não sabem o quê.

Não sei porque, mas gostei. Talvez seja pelo clima tenso e pela atmosfera quase palpável de medo. Real e imaginário.

Monday, June 15, 2009

Cadê o History Channel?

O que terá acontecido com o History Channel?

Já foi o melhor canal de TV a cabo, com documentários sempre muito bem feitos e interessantes.

De uns tempos para cá, no entanto, raramente há um documentário que valha a pena ver. Entraram na programação coisas sem sentido como "Caminhoneiros do gelo", "Caçadores de OVNIS", "Lenhadores", "Cemitérios de máquinas" etc., etc.

O mesmo vale para o Discovery Channel, com "Overhauling", "Assombrações", "Trabalho sujo", "Psychic Detectives", "Mythbusters" e outras porcarias do gênero.

Nem Cristo salva.

Só o download.

Sunday, June 14, 2009

Na correria, a sutileza ficou em casa

Michael Walzer é o filósofo que estou lendo atualmente, e estou apreciando bastante. Mesmo assim, confesso que fiquei surpresa com o parágrafo colado abaixo, de Guerras Justas e Injustas, capítulo 7, sobre a Guerra da Coréia da década de 50:

A guerra americana na Coréia foi descrita oficialmente como uma "ação policial". Tínhamos ido ajudar um Estado que se defendia de uma invasão total, empenhados no árduo trabalho de fazer vigorar a lei internacional... Mais uma vez, estávamos em guerra contra a agressão em si tanto como contra um inimigo específico. Pois bem, quais eram os objetivos de guerra do governo dos Estados Unidos? Seria de esperar que a democracia americana, vagarosa para se enfurecer, mas terrível em sua ira justa, tivesse pretendido a total erradicação do regime norte-coreano. Na realidade, nossos objetivos iniciais eram de natureza limitada. No debate no Senado a respeito da decisão do presidente Truman de enviar às pressas tropas americanas para a guerra foi afirmado repetidas vezes que nosso único objetivo era forçar os norte-coreanos a voltar à linha divisória e restaurar o status quo anterior à guerra.... "O Estado ganancioso", escreve Liddell Hart, "inerentemente insatisfeito, precisa alcançar a vitória para conquistar seu objetivo... O Estado conservador consegue atingir seu objetivo... frustrando o empenho do outro lado pela vitória."

Moral da história: Walzer, filósofo americano, é mesmo americano.

Saturday, June 13, 2009

O google vai te pegar

De todas as asneiras com cara de conhecimento profundo que encontrei na internet recentemente, esta é top de linha: estamos sendo ameaçados em nossa capacidade de avaliar o real pela hegemonia absoluta do Google.

Há gente escrevendo sobre os perigos que o Google representa para nós, pobres idiotas, que achamos que toda realidade se resume a um buscador.

O raciocínio é o seguinte: quando procuramos algo no google e o buscador responde que não encontrou a informação, nós tendemos a achar que o que procuramos não existe.

Como assim, cara pálida? É claro que, se o Google é o melhor buscador e não encontrou o que procuramos, é natural supor que a informação não exista NA INTERNET, embora não seja bem assim. Mas supor que isto interfere em nosso senso de realidade é um pouco demais.

Então vamos fazer um teste: procuro meu nome na internet e não me encontro. Opa, não existo!

O autor da pesquisa também quer nos fazer crer que o google, tadinho, aumentou o plágio. Imagine a pesquisa acadêmica 50 anos atrás: era muito difícil identificar um plágio bem feito. Hoje basta usar um programa para descobrir a fraude. O Google tornou, isto sim, mais fácil detectar o plágio. Porque mais visível, talvez pareça mais frequente, mas há uma confusão evidente entre a visibilidade e a recorrência.

Quando é que essa apropriação tosca do discurso marxista vai começar a ser menos conspiratória e mais racional?

Nada contra o discurso marxista, claro, mas acho o fim essas inteligências que confundem intelectualidade com teoria de conspiração revelada. No fundo, no fundo, há uma pretensão de salvar o outro revelando que ele precisa ser salvo.

Friday, June 12, 2009

ececiledon

Aposto que você nem imagina o que seja ececiledon.

Uma pista: tem a ver com antropologia.

E agora? Adivinhou?

Esqueça. Não vai adivinhar nunca, a não ser que fale francês. Ler não é suficiente.

"Ececiledon" é a pronúncia de "Essai sur le don" (Ensaio sobre o dom), livro de Marcel Mauss, de 1924.

Credo.

Melhor sair pela tangente e citar lévistrô.

Se nada resolver, tente o alfabeto fonético internacional, mas não garanto nada.

Thursday, June 11, 2009

X-phi

Já dizia Bachelard que a filosofia é segundo discurso em relação à ciência. Não tenho certeza, mas aparentemente esta é a proposta da filosofia experimental.

Digo que não tenho certeza porque nas leituras que fiz (poucas, e apenas na internet) ainda não ficou claro para mim o que é a X-phi. O que pude inferir até agora é que se trata de um projeto que pretende "empiricizar" a filosofia, para usar um neologismo. Como isto não é possível sem recorrer à ciência e a métodos empíricos de observação e experimentação, a conclusão a que posso chegar é que esta proposta, se possível, efetiva a noção de segundo discurso: nada se pode inferir sem o recurso da pesquisa científica.

Muito bem.

A filosofia é, por excelência, conceitual. Ter como objeto os conceitos, as abstrações, o próprio pensamento, é o que a define, e não creio que isto seja meramente um caso de apego à tradição. O pensamento filosófico é anterior à cultura científica, na medida em que busca fundamentos, pressupostos e identifica e avalia critérios.

Isto significa, em minha opinião de leiga em filosofia experimental, que uma abordagem empírica (e, portanto, indutiva) destrói o que diferencia a filosofia de outros saberes: o fato de ser inteiramente dedutiva. A verdade empírica, por mais importante que seja, não é verdade lógica, porque indutiva, probabilística.

A não ser que tenham encontrado um modo de "empiricizar" a filosofia preservando seu caráter dedutivo, acho improvável que a filosofia mantenha suas caraterísticas próprias ou independência em um projeto "experimental".

Wednesday, June 10, 2009

Peccatum philosophicum

O maior pecado que se pode cometer em filosofia, além do fato de acreditar que há pecados filosóficos, é o de nos atermos ao inessencial, ao detalhe, ao contingente, ignorando o essencial.

Bem, estou prestes a cometer esse pecado, e escolhi Kant para me assessorar na tarefa.

O que menos importa no texto kantiano são as citações em latim. É claro que elas têm o propósito de clarear o sentido do que se quer dizer, evitando ambiguidades, mas isto é apenas um detalhe.

Eis as citações em latim que retirei do texto À paz perpétua, no firme propósito de me ater ao que não interessa:

Reservatio mentalis – restrição
Miles perpetuus – exércitos permanentes
Percussores – assassinos
Venefici – envenenadores
Perduellio – traição
Bellum internecinum – guerra de extermínio
Bellum punitivium – guerra de castigo
Uti exploratoribus – uso de espias
Leges prohibitivae – leis proibitivas
Leges strictae – leis de eficácia rígida
Leges latae – leis permissivas
Leges preceptivae – mandado
Leges permissivae – leis permissivas
Possessio putativa – posse presumida
Statu iniusto – condição injusta
Ius civitatis – direito civil
Ius gentium – direito dos povos
Ius cosmopoliticum – direitos humanos
Forma regiminis – forma de governo
Forma imperii – forma da soberania
Foedus pacificam – federação da paz
Pactum pacis – pacto de paz
Civitas gentium – estado de povos
Furor impius intus – fremit horridus ore cruento: um ímpio e horrível furor ferve bem dentro da sua boca sangrenta
Providentia conditrix; semel iussit, semper parent: ordena uma vez, sempre obedecem.
Providentia gubernatrix – providência governante
Directio extraordinaria – disposição extraordinária
Natura daedala rerum – natureza criadora de todas as coisas
Formaliter – formalmente
Gryphes jungere equis – atrelar cavalos e grifos
Materialiter – materialmente
Causa solitaria non juvat – uma causa só não ajuda
Fata volenteum ducunt, nolentem trahunt – o destino guia quem lhe obedece e arrasta quem lhe resiste
Ultra posse nemo obligatur – ninguém é obrigado a ir além do que pode
Vae victis – ai dos vencidos!
Fac et excusa – atua e justifica-te
Si fecisti nega – se fizeste algo, nega
Divide et impera – cria divisões e vencerás
Primum inter pares – chefe supremo
Causa non causae – causa não causada
Problema tecnicum – dificuldade técnica
Problema morale – problema moral
Fiat justitia, pereat mundus – reine a justiça e pereçam os velhacos deste mundo
Tu ne cede malis sed contra audentior ito – não cedas ao mal, mas enfrenta-o com ousadia
Non titulo, sed exercido tais – tirano no exercício do poder, não na sua denominação
Potentia tremenda – dimensão terrível

Tuesday, June 09, 2009

O boi mudo da Sicília

A cidade de Aquino, onde nasceu Tomás, ficava na Sicília e Tomás de Aquino não era lá muito falante, segundo seus biógrafos. Por isso foi apelidado de "Boi mudo da Sicília".

Ainda estou por saber de onde vem o "boi" do apelido, mas suponho que houvesse nele, digamos, alguma lentidão nos gestos, ou talvez ruminasse idéias, ou talvez ainda a parte "boi" se refira ao fato de que era absurdamente gordo. Não era, claro. Ficou.

Provavelmente o apelido só fez sentido de fato na fase prá-lá de 150kg. É difícil ter agilidade e pesar tanto. E falar cansa.

Sunday, June 07, 2009

Natureza humana nudibrânquia

Só fiquei sabendo da existência do filósofo Bernard Wilson quando de sua morte, há cerca de dois anos. Não conheço nada dele, mas uma citação em Michael Walzer, Guerras Justas e Injustas, capítulo 4, me chamou a atenção.

Nela, Wilson defende que as ciências naturais têm de ser usadas pelos historiadores para compreender a política, cujo entendimento seria deficiente exatamente em razão desta falta grave.

Sinceramente, acho que ele andou assistindo demais ao Discovery Channel. Encontrou uma ligação onde ela não é plausível. As relações entre os Estados são, antes de mais nada, relações entre homens. E homens - isto é o que os distingue das outras espécies - são capazes tanto de seguir a natureza quanto de ir contra ela. Assumindo, é claro, que a natureza humana não se distingue da natureza dos nudibrânquios.

O contrário também serve, tá? A natureza "nudibrânquia" não se distingue da natureza humana.

Certo. É por isso que estamos nos matando uns aos outros (literalmente, não metaforicamente) e que a lei não tem força alguma para modificar essa situação.

Acho que ele se inspirou em leis de mercado para concluir pela aproximação entre comportamento humano e comportamento de - vá lá - nudibrânquios.

Pensando bem, até que ele pode ter razão.

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Considero uma grave deficiência por parte dos historiadores... o fato de ser tão raro que eles se interessem por fenômenos biológicos e zoológicos. Numa recente... filmagem que mostrava a vida no fundo do mar, vê-se um organismo primitivo chamado nudibrânquio devorando pequenos organismos através de um grande orifício numa das extremidades do seu corpo. Quando depara com outro nudibrânquio de tamanho apenas ligeiramente menor, ele engole esse também. Ora, as guerras travadas pelos seres humanos geralmente são estimuladas... por instintos semelhantes à voracidade do nudibrânquio. (Edmund Wilson, Patriotic Gore, Nova York, 1966), p. xi.

Saturday, June 06, 2009

São Golias

Você sabe quem foram os Goliards?

Eram os estudantes da Universidade de São Golias.

Fictícia.

A Universidade foi criada por estudantes franceses em 1977, baseando-se na tradição dos Goliards, poetas satíricos dos séculos XII e XIII.

Os Goliards tinham o hábito de escrever apologias a bebedeiras ou poemas contra a ordem instaurada. O termo passou a ser sinônimo de "vagabundo" porque os adeptos de São Golias eram jogadores desordeiros e beberrões, cujas sátiras eram dirigidas sobretudo à Igreja e aos papas.

E não é que a Idade Média tinha mais que devotos?

Friday, June 05, 2009

Lana Caprina: Sócrates e a pulga

Aristófanes, comediógrafo grego do século V a.C., não era lá muito amigo de Sócrates. O filósofo chega a se queixar do retrato que o comediógrafo faz dele, se não me engano, na Apologia de Platão.

Mas, por menos verdadeiro que seja, o retrato é divertido.

Estrepsíades, um velho malandro e nada inteligente, resolve estudar com os sofistas, cujo líder é Sócrates, para aprender a enganar os credores. Quando chega ao pensatório, um discípulo o recebe e se gaba da genialidade de Sócrates ao resolver um problema que os estava incomodando.

O problema consiste em saber quantas vezes uma pulga pode saltar a medida correspondente ao tamanho de seus pés.

A solução é simplérrima: mergulha-se os pés de uma pulga em cera quente. Quando a cera esfriar, é só medir o tamanho da botinha. Depois mede-se a distância entre a orelha de Querefonte e a cabeça de Sócrates. Pronto! Eis a resposta.

Fácil, não?

Difícil é saber como a ameba vê o mundo, mas isto Einstein já resolveu.

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Estrepsíades: ... Fale-me desse negócio que está abortado...
Discípulo: Não é lícito dizê-lo, só aos discípulos.
Estrepsíades: Então fale, coragem! Pois eu aqui vim ao "pensatório" para ser um discípulo...
Discípulo: Vou dizê-lo. Mas deve-se considerá-lo um mistério... Há pouco, Sócrates interrogava Querefonte sobre uma pulga. Indagava quantas vezes ela pode saltar o tamanho dos seus próprios pés, porque ela mordeu a sobrancelha de Querefonte e pulou para a cabeça de Sócrates...
Estrepsíades: Então, como foi que ele mediu?
Discípulo: Com a maior habilidade. Dissolveu cera; depois, tomou a pulga e mergulhou os seus pés na cera. A seguir, quando a pulga esfriou, ficou com umas botinhas à moda pérsica; ele descalçou-as e mediu a distância.
Estrepsíades: Ó Zeus soberano, que sutileza de pensamento!


Aristófanes, As Nuvens, 140ss

Thursday, June 04, 2009

Era uma vez

Uma escola de Tóquio estreou a grande novidade do futuro, ainda que previsível: em lugar do professor, um robô.

Com ele, diz a reportagem linkada no título deste post, as crianças se interessam mais pela escola. Coisa que, fica subentendido, os professores regulares já não conseguem fazer.

Mas por enquanto ele só sabe dizer a frase preferida dos professores atuais: "fiquem em silêncio".

Já imagino um futuro em que alguém dirá, a título de curiosidade:

"No passado, as pessoas ensinavam umas às outras, porque não havia professores-robôs".

Imagino ainda o interlocutor perguntando, espantado:

"E aprendiam?"

Wednesday, June 03, 2009

Rolou um puta que pariu

Encontrei em Michael Walzer, Guerras Justas e Injustas, capítulo 4, esta citação de Marx, em carta a Engels:

Os franceses precisam de uma derrota acachapante [escreveu ele em carta a Engels]. Se a Prússia sair vitoriosa, a centralização do poder do Estado será favorável à centralização da classe operária. A supremacia alemã deslocará o centro do movimento da classe operária na Europa Ocidental da França para a Alemanha e... a classe operária alemã é, em termos teóricos e organizacionais, superior à da França. A superioridade dos alemães com relação aos franceses... significaria ao mesmo tempo a superioridade da nossa teoria com relação à de Proudhon etc.

Como trata-se de citação de citação no livro de Walzer, deve-se conceder o benefício da dúvida a Marx. De qualquer modo, o que está escrito aí é que Marx julga importante que a Prússia vença a França porque

1) O operariado francês é inferior ao operariado alemão;
2) A vitória da Prússia implicaria em um ambiente mais favorável à revolução;
3) O ambiente mais favorável à revolução implicaria na superioridade do comunismo sobre o anarquismo.
Logo, a vitória da Prússia sobre a França é vantajosa para minha doutrina.

Então tá, franceses. Vamos lá perder a guerra (de modo acachapante, de preferência) só para que o comunismo seja superior ao anarquismo.

Ow, é isso mesmo? Que política internacional é essa que reduz seres humanos a marionetes destinadas a tornar vitoriosa uma teoria?

Desde quando a vitória em uma guerra passou a ser indicativo de superioridade moral e cultural?

Tuesday, June 02, 2009

Não sou nerd

Não tem jeito, sou uma pessoa comum, eu que me julgava nerd por me divertir trabalhando e trabalhar me divertindo.

Fiz o teste para saber se sou nerd, certa de que conseguiria uma pontuação bem expressiva, e que enfim poderia dizer: agora, sim, é oficial: sou nerd!

Ledo engano. Minha pontuação foi zero. ZERO.

Zero? Como assim?

Eu fiz tudo certo, e até entendi a piada sobre os números binários!

Vai ver que é porque não quero ser enterrada com o monitor. Prefiro ser enterrada com um laptop. Vou fazer o quê só com o monitor, fio? Tem lógica?

É, não adianta lamentar. Mas ainda posso dizer que "zerei" o teste. É um começo.

--------

Você obteve 0 pontos

Pessoa Comum! Você é um simples e comum humano, não possui nenhuma característica nerd. Deve se preocupar em manter os verdadeiros nerds em segurança, já que correm risco de extinção por serem assexuados.

Monday, June 01, 2009

O lenço da guerra

Lucky Luciano foi um dos grandes chefões da máfia nos Estados Unidos, comparável a Al Capone, e atuou sobretudo no período da lei seca. Luciano esteve envolvido em uma série de atividades criminosas, inclusive o tráfico de heroína.

O que ninguém sabe é que seu lencinho amarelo, com suas iniciais, foi o responsável pelo desembarque bem sucedido dos aliados na Sicília, em 1946.

A história é fantástica demais para ser verdadeira, mas conta-se que os americanos pretendiam entrar na Itália de Mussolini pela Sicília, dominada pela máfia. Na verdade, um desembarque já havia acontecido, limitado a regiões litorâneas, mas se os chefões aceitassem a presença dos aliados na região tudo seria mais fácil. Então recorreram a Lucky Luciano, que tinha conexões na ilha, mas cumpria pena em uma prisão americana. Luciano aceitou colaborar, e entregou um lenço amarelo com suas iniciais aos militares. A instrução era para o jogassem em uma região específica. Assim foi feito: um avião sobrevoou a ilha e deixou cair o lenço, que chegou às mãos dos chefões. Entendendo o recado, eles permitiram que os aliados instalassem na ilha uma base de operações.

Quem conta essa história é Bernard Michal, em Os Grandes Enigmas da Guerra Secreta. São Paulo, Otto Pierre Editores, 1973.

Sunday, May 31, 2009

Fonte da juventude (1)

A condessa Elizabeth Bathory, que viveu no século XVII na Hungria, ou na Transilvânia, acreditava que manteria a juventude eterna se tomasse banhos frequentes com o sangue de mulheres jovens e virgens. Fácil, né? Bastava matar uma jovem a cada vez que resolvesse tomar banho.

Como os europeus não são muito conhecidos por tomar banho todo dia, e nessa época devia ser no máximo um banho por mês, ela não precisava de muitas virgens. Mesmo assim, seu diário registrava em torno de 650 mortes.

Vampirismo clínico? Que nada. Sadismo mesmo.

Julgada e condenada, Bathory morreu na prisão. E, claro, virou vampira. E nome de banda de Black Metal.

Saturday, May 30, 2009

Liberalismo x Marxismo

Escrevi, na tese, que os sofistas ampliaram o conceito de cidadania ao permitir que todos que quisessem estudar pudessem fazê-lo. Até então só os nobres tinham direito à educação.

Meu orientador argumentou que isso é uma falácia liberal: embora todos pudessem, em tese, estudar com os sofistas, apenas aqueles que pagavam podiam de fato fazê-lo. Então a situação não mudou, porque só os nobres tinham dinheiro suficiente para pagar.

Não entendo assim. Acho que há uma diferença relevante entre o que uma cultura não permite devido a valores assumidos e o que ela não permite devido à desigualdade econômica. No primeiro caso, a dificuldade não pode ser transposta. No segundo, pode, ao menos em tese.

Independentemente do empírico, da prática, alguma coisa fundamental aconteceu: antes dos sofistas ninguém tinha acesso à educação exceto os nobres, e isso não tinha nada a ver com poder pagar, mas com uma estrutura social inflexível. Quando os sofistas começaram a vender seus ensinamentos, essa ordem social sofreu uma alteração substancial: só os nobres estudavam (por razões diversas, inclusive financeiras), mas todos podiam estudar, se quisessem e tivessem dinheiro para pagar. É verdade que não tinham, mas isso não muda o fato de que podiam estudar.

Logo, os sofistas ampliaram, sim, a educação, tornando-a possível para todos.

Friday, May 29, 2009

C'mon...

Lembra do caso dos piratas da Somália, cerca de um mês atrás? Pois é, vai virar filme, produzido por Kevin Spacey.

Não é cedo demais? Está faltando assunto?

O que há para contar em uma história tão recente, de que sabemos o começo, o meio e o fim?

De qualquer modo, deve dar bilheteria. Americano adora histórias de patriotismo heróico. É o que os faz superiores, né não?

Thursday, May 28, 2009

Quanto cobravam os sofistas?

A diferença entre um sofista e um filósofo é enorme.

Ah, a Grécia capitalista!

Ah, o mundo capitalista!

Bem. Quanto ganhavam os sofistas?

Protágoras cobrava 100 minas por um curso, correspondente a 10.000 dracmas, a unidade da moeda grega de então. Um único curso era suficiente para comprar diversas casas como a de Sócrates.

Pródico cobrava 50 dracmas por um curso completo de gramática e uma por um resumo. Modesto. E deprimido, segundo Platão.

Um operário qualificado ganhava uma dracma por um trabalho completo.

Hípias diz, no diálogo de Platão que leva seu nome, que ganhou com um único curso 150 minas. Entregou o dinheiro ao pai, que vivia na ilha de Élis. Será que o pai se perguntou o que o menino estava fazendo para ganhar tanto dinheiro?

Não. Hípias era bem conhecido, assim como sua atividade. O pai deve, isto sim, ter agradecido aos deuses por ter um filho tão bom. Bom para fazer dinheiro, claro.

E por ter preferido ser sofista a filósofo.

A posteridade que o julgue, mas que viveu bem, lá isso viveu.

Wednesday, May 27, 2009

O patrimônio de Sócrates

Fiquei me perguntando: além de uma manta velha, rasgada e suja e sandálias furadas, qual teria sido o patrimônio de Sócrates?

500 dracmas (ou 5 minas). Este era, segundo Xenofonte, o valor total do patrimônio de Sócrates. Não é de admirar que Xantipa fosse uma mulher estressada.

Vejamos: um sapato custava, em média, 8 dracmas;

Um vinho de qualidade podia ser adquirido por 2 dracmas;

O valor médio de uma casa era de 500 dracmas;

Uma fazenda, com a casa, custava em torno de 5.000 dracmas;

O aluguel de uma casa simples, 36 dracmas por ano.

Isto significa que Xantipa não podia comprar muitos sapatos para os filhos. O vinho que os gregos bebiam como água, só de péssima qualidade. Uma fazenda, nem pensar.

Mas, afinal, quem precisa de sapatos, vinho e fazenda quando tem a filosofia?

E depois, Sócrates tinha uma casa que valia 5 minas.

Tá bom demais.

Sunday, May 24, 2009

Escárnio dos filósofos pagãos

Alguns trechos de Escárnio dos Filósofos Pagãos, de Hérmias, o filósofo (séc I de nossa era):

Anaxágoras me toma consigo e me dá a seguinte lição: “O princípio do universo é o nous ou inteligência. Ele é o autor e senhor de todas as coisas, que põem ordem no que é desordenado, movimento no que está imóvel, distinção no confuso e beleza no que não é belo”. Gosto de ouvir Anaxágoras dizer isso e adiro ao seu ensinamento. Mas contra ele se levantam Melisso e Parmênides. Parmênides anuncia poeticamente que a essência é coisa única, eterna, imóvel e em tudo semelhante. Sem saber como, eu me transfiro para esse dogma. Parmênides expulsou Anaxágoras da minha mente. Mas, quando penso estar em posse de um dogma estável, Anaxímenes se intromete, gritando: “Eu, porém, te digo: o universo é ar, e este, condensando-se e solidificando-se, transforma-se em água e terra e, rarefazendo-se e espalhando-se em éter e fogo e, voltando de novo à sua natureza, em ar...” Também me acomodo com isso e torno-me amigo de Anaxímenes.
Mas aí está frente a frente Empédocles, resmungando e gritando em alta voz a partir do Etna: “Os princípios do universo são o ódio e a amizade, esta unindo e aquele separando, e a luta entre os dois realiza tudo. Eu os defino como semelhantes e dessemelhantes ilimitados e com limites, como eternos e que têm começo”.
- Bravo, Empédocles! Estou disposto a seguir-te até a cratera do vulcão.
Mas aí está agora Protágoras, puxando-me para outro lado, quando diz: “O limite e o critério das coisas é o homem; o que lhe cai sob os sentidos são coisas, e o que não cai não se encontra entre as espécies da essência.” Lisonjeado com esse raciocínio, fico gostando de Protágoras, pois ele atribui tudo o mais ao homem. Tales, porém, me desvia para outro lado com a verdade, definindo a água como princípio do universo: “Do úmido tudo se compõe e nele tudo se dissolve, e a terra se sustenta sobre a água”. E por que não acreditar em Tales, o mais velho dos jônios? Todavia, o seu concidadão Anaximandro afirma que o movimento eterno é um princípio mais antigo que o úmido, e que por ele algumas coisas nascem e outras perecem. Deve-se, portanto, acreditar em Anaximandro.
Mas também não é famoso Arquelau, que afirma que os princípios do universo são o calor e o frio? Todavia o grandiloquente Platão não está de acordo com ele, pois afirma que os princípios do universo são Deus, a matéria e o modelo. Agora sim eu fiquei convencido. Com efeito, como não hei de acreditar no filósofo que inventou o carro de Zeus? Atrás dele, porém, vem o seu discípulo Aristóteles, invejoso do seu mestre pela construção do carro, e define outros princípios: a ação e a passividade. O princípio ativo, que é o éter, é impassível; o passivo tem quatro qualidades: secura, umidade, calor e frio. Com efeito, tudo nasce e morre pela transformação desses princípios. Já estou cansado de ir para cima e para baixo com opiniões diferentes; vou ficar com o que Aristóteles pensa, e que ninguém venha me incomodar com os seus discursos.


Mas não fica com Aristóteles, não.

E la nave va.

Friday, May 22, 2009

Hérmias, o filósofo

E por falar em religião filosófica, ou filosofia religiosa, ou muito pelo contrário, lembrei de Hérmias, o filósofo, que escreveu Escárnio dos filósofos pagãos no começo de nossa era.

Nada sei sobre o autor, mas não importa. O que interessa saber está no texto: Hérmias faz uma passagem bem humorada pela filosofia grega, procurando a verdade. Cada filósofo com que se depara o convence da verdade, mas logo encontra outro e então concorda com uma posição contrária à anterior, e assim sucessivamente.

No fim das contas, está confuso, "sem saber em quem acreditar", e encontra Jesus. Pronto. Eis a verdade.

Considero este registro o melhor exemplo da diferença entre filosofia e religião: Hérmias procura a quem seguir. Como ele próprio diz, quer acreditar em alguém. Tenta acredita em todos os filósofos, mas percebe que isto é impossível, porque as doutrinas são rivais e mutuamente excludentes. Então fixa-se na doutrina cristã, que julga ser verdadeira por não ter oposição real. Em alguns momentos, chega a dizer que "acreditou no dogma" do filósofo tal, e que quase se atirou no Etna junto com Empédocles.

Hérmias não entendeu o que leu. Estava procurando a quem seguir, queria um dogma em que pudesse acreditar, e procurou no lugar errado. Passou pela filosofia, se é que passou, mas não entendeu nada. A contradição, a oposição de idéias, ele julga que são sinais de falsidade, de inverdade. O que ele entende como não-contraditório, a doutrina cristã, é verdadeiro exatamente por isso.

Não conheço outro texto tão expressivo, do ponto de vista da separação entre filosofia e pensamento mítico, como esse.

Hérmias queria uma verdade pela qual pudesse viver. Encontrou.

Vaya con dios.

Com a minha benção.

Tuesday, May 19, 2009

MacIntyre

Alasdair MacIntyre é, sem dúvida, um grande filósofo. Li Depois da Virtude, que achei excelente, e a parte sobre os gregos em Breve História da Ética, mas estou tendo alguma dificuldade com a leitura de Justiça de Quem? Qual racionalidade?

Ex-marxista, MacIntyre se deixou converter a Tomás de Aquino nos anos 80 e é hoje um católico fervoroso. Nada contra, mas quando a sua religiosidade se confunde com sua filosofia, a coisa fica complicada. Pela via de Tomás de Aquino ele retornou a Aristóteles e defende uma tese pra lá de utópica: quer o retorno à polis, às pequenas comunidades, porque somente nelas o telos do homem, associado à ética das virtudes, é possível. Certo. Entendo a proposta, mas não entendo o sentido de defender o retorno ao passado, sobretudo no que diz respeito ao Estado, quando o mundo caminha para a superpopulação e, em consequência, para megacidades.

MacIntyre é um pensador estranho. Moderno, com propostas de retorno ao passado. Tem matizes analíticos, mas recusa o projeto iluminista. Sua filosofia é em parte religião. E, diferentemente de tudo que já li em filosofia, discute seriamente a obra de Jane Austen, uma escritora considerada menor. É claro que não o faz como crítico de arte. Seu propósito é mostrar a moralidade subjacente à obra. Em todo caso, só o fato de ter lido Jane Austen e analisar cinco de suas obras (acho que Austen escreveu apenas seis) já é algo inusitado.

Fico no meio do caminho. É interessante, perspicaz, culto e inteligente, mas algo não vai bem. Por tudo que disse, considero MacIntyre um legítimo sucessor de Kierkegaard. O único, talvez. Mas ainda prefiro Kierkegaard.

Saturday, May 16, 2009

Deadwood

Para quem gosta do gênero western, a série Deadwood, da HBO (que também produziu Roma) é uma excelente opção. Ainda acho que Roma é melhor, mas Deadwood tem muitas qualidades. A principal e, creio, também seu defeito, é o realismo.

Enquanto o oeste selvagem é visto no cinema com romantismo, saudosismo e maniqueísmo, Deadwood tem cenários feios, sujos e, embora haja uma tendência ao maniqueísmo, a trama e os personagens acabam se revelando mais complexos do que inicialmente pareciam ser. A proposta de realismo é o grande mérito da série, mas há excessos, que revelam muito mais um olhar moderno e cínico do oeste que propriamente fidelidade histórica.

É claro que se trata de uma obra de ficção, mas a proposta, que se baseia em eventos, contexto e personagens históricos, pretende ser realista. A violência, a falta de higiene e os conflitos de poder em uma terra sem lei, em que não se morre de causas naturais, parecem historicamente adequados. Mesmo assim, ainda acho que há exagero na apresentação dos personagens, na violência (em quase todo episódio alguém morre assassinado) e na superexposição do sexo. Moderno demais, ou pagão demais.

Comparada a Roma, Deadwood é bem mais contida nos aspectos que mencionei. Mas Roma é pagã. Deadwood, uma cidade sem lei do final do século XIX, é cristã. Embora se situasse, literalmente, no limite da civilização, ainda é cristã. Por isso, o tom me parece um tanto exagerado. A figura de Calamity Jane, que de fato existiu, é bem caricata. Wild Bill é retratado como um homem de grande caráter e uma certa docilidade, apesar de matar para viver. Seu assassino, o "covarde Jack MacCall" é um sujeitinho medíocre e cretino, o Eróstrato do oeste. Seth Bullock é o bom moço - o clássico tipo um dos eneagramas - que quer consertar o mundo mas esconde uma ira assassina e se deixa corromper aqui e ali. E Al Swearengen, um tipo conhecido pela virulência e pelas atrocidades que cometeu, na série aparece mais humanizado, apesar de matar ou mandar matar em quase todos os episódios. Há um certo fatalismo no personagem, que em vários momentos afirma não gostar do que faz. É um tipo trágico, que segue seu destino "de homem", como diz, e de menino criado em bordel. Seu rival no negócio de bordéis, Cy Tolliver (um dos personagem fictícios, até onde posso saber) é mais refinado, mas bem mais linear na vilania.

A oposição entre o bom moço Seth Bullock (que organizou e moralizou a cidade histórica) e o vilão Al Swearengen (dono do bordel Gem Theater), ambos figuras históricas, em alguns momentos caminha em sentido contrário: Al tem suas razões para agir como age (a história de vida infeliz e a obsessão com o lucro) que quase justificam sua crueldade, enquanto o bom moço é dominado pela fúria, muito mais que pelo desejo de justiça.

De qualquer modo, a série é mesmo muito boa, especialmente na primeira temporada. A partir da segunda o tom exagerado fica ainda mais evidente, mas há coerência na história. É interessante também acompanhar o desenvolvimento da cidade, permeado por acontecimentos históricos como a epidemia de varíola, o assassinato de Wild Bill e os conchavos, assassinatos e subornos para conseguir a legalização (já que o vilarejo se encontrava em território indígena, e não fazia parte da União).

Para quem gosta do gênero, é imperdível.

Friday, May 15, 2009

Cuidado

Não, não são spoilers desta vez. Este post é para alertar sobre um novo golpe com telefones.

Se estão ligando insistentemente para seu celular, desconfie.

Se seu telefone fixo toca sem parar, mas fica mudo quando atende, desconfie.

Não sei como isso é feito, mas estas são tentativas de clonar seu número (no caso do celular) e de ativar o siga-me (no caso do fixo).

Fique atento, para não ter surpresas desagradáveis.

Wednesday, May 13, 2009

E por falar em Tim Roth...

Acabei de ver a primeira temporada de Lie to me, com Tim Roth. Não é uma série especial, mas tem seus atrativos. Na verdade, um só: Cal Lightman, personagem de Tim Roth, é um cientista especializado em identificar sinais inconscientes e involuntários de mentira. Ou melhor, ele é capaz de ler gestos e expressões e descobrir verdades que tentam encobrir.

Vale pela informação, embora haja, claro, um certo exagero.

O ponto fraco da série está nas histórias contadas. Via de regra não são interessantes, mas pelo menos há reviravoltas capazes de manter a atenção do espectador.

De qualquer forma, vale a pena ver um bom ator em cena, além de ser possível extrair algum conhecimento da série.

Tuesday, May 12, 2009

Ars gratia artis

Sabe o leão da Metro Goldwyn-Mayer? Aquele que ruge, no começo de cada filme?

Pois é. Acima do leão há uma frase em latim: ars gratia artis: arte pela arte.

A frase é de Edgar Allan Poe e ilustra seu entendimento de que a criação artística deve ser autônoma, espontânea e livre de moralidade, utilidade e inspiração.

Sim, inspiração. Allan Poe acreditava que, para escrever, o artista não deve se prender nem mesmo à inspiração. Deve apenas escrever. Como ele diz, o poema deve ser escrito pelo poema e para o poema, e isso é tudo.

Muito bem. Só não entendi o que a frase está fazendo na logo da Metro.

Arte pela arte?

Sei não.

Vai ver que é por isso que está em latim: nada a ver, mas a esmagadora maioria nem vai perceber.

Monday, May 11, 2009

Funny games

Assisti hoje ao filme "Funny Games" (em português, "Violência gratuita"). Confesso que inicialmente pensei se tratar de mais um desses filmes B em que há um torturador e um ou mais torturados, que no final viram o jogo e tudo acaba bem com a morte do bandido.

Se alguém pensa que acabei de contar o final do filme, se engana.

Isso eu vou fazer em seguida.

Portanto, se não quer saber, pare a leitura aqui.

Cuidado: spoilers!

Aviso feito, voltemos ao filme.

Como dizia, o início sugere ser um filme B, embora tenha a presença de Tim Roth, excelente ator, que sabe escolher os contratos que assina (ou seu empresário, tanto faz). Naomi Watts também está lá, mas desde King Kong não confio mais nela. E ainda há Michael Pitt, o adolescente especializado em psicopatas (vide Cálculo Mortal). Ainda não deu prá saber se é bom ator, mas psicopatas ele faz bem.

Enfim. A história é sobre dois adolescentes que aterrorizam uma família feliz, equilibrada, amorosa, classe média para alta, gente boa, casa limpa, música clássica, blá-blá-blá.

A violência dos rapazes é gratuita, absoluta, cheia de maneirismos e lúdica. É a violência pela violência. Lá pelas tantas, quando George, o pai, pergunta por que estão fazendo aquilo, Paul (o mais velho dos rapazes, Michael Pitt) começa a desfilar uma série de razões clássicas, o primeiro ponto alto do filme: infância perdida, família destruída etc. etc. A sua primeira resposta é a que vale: "não sei". Não há explicação para o que fazem, a não ser o fato de que gostam do que fazem. A razão, se existe, é a diversão. É, portanto, estética. Não moral, não social. Puramente estética.

A maneira educada com que se dirigem às vítimas, com uma fala lenta, estudada, é parte da estética da violência e de sua gratuidade: faz parte do jogo parecer outra coisa, encenar a polidez, o refinamento nas palavras e nas atitudes, assim como eles próprios são imaculadamente limpos, vestidos de branco, como jogadores de golfe. Matam, e continuam limpos. Este fato aponta para seu distanciamento dos eventos: embora sejam os protagonistas da violência, eles não estão de fato lá, nem emocionalmente, nem fisicamente.

Após mais ou menos dois terços do filme, um segundo evento importante acontece: Ann, a vítima, consegue se apropriar da arma e matar um dos rapazes, o mais jovem, Puddy ou Peter.

E então entendemos o filme.

Cuidado! Mais spoilers!

A morte de Peter faz Paul procurar desesperadamente um controle remoto que até então não havia aparecido na trama, até onde me lembre. Quando encontra o controle remoto, ele faz a cena recuar, até retornar ao momento anterior à reação da vítima. Feito isso, o filme continua, mas agora ele já sabe o que a mulher vai fazer, e a impede de agir. Tudo está bem novamente, e ele alerta a vítima de que não pode quebrar as regras.

Bem, vou poupar quem ainda lê este brogue dos eventos que se seguem. O que me interessa está aqui (e já contei o principal): é um jogo realmente. A conversa entre os dois rapazes, no barco, sobre realidade e virtualidade, apesar de rápida, retoma o fio condutor: a violência é real, mas é real no virtual.

Bom filme. Se entendi bem (e não importa se não entendi), o filme é uma crítica não somente à violência (real e virtual), mas também uma crítica à nossa indiferença diante da violência - o que o final sugere, quando tudo acontece como deve acontecer no jogo: zeramos este jogo. Vamos ao próximo.

Ou talvez não seja nada disso.

Quem se importa?

Monday, April 20, 2009

Me fez de um cavalo um asno

Encontrei em Alasdair MacIntyre, Depois da Virtude, p. 212:

"Na saga da batalha de Clontarf em 1014, quando Brian Boru derrotou um exército de víquingues [sic], um dos nórdicos, Thorstein, não fugiu quando o resto do exército se acovardou e fugiu, mas continuou onde estava, amarrando o cadarço do sapato. Um líder irlandês, Kerthialfad, perguntou-lhe por que não estava fugindo. - Eu não conseguiria chegar em casa hoje - disse Thorstein - Moro na Islândia".

Ah, bom. Pensei que queria morrer nas mãos no inimigo.

Agora está explicado.

Ele queria mesmo morrer nas mãos do inimigo, mas encontrou um modo criativo de fazer isso: amarrando o cadarço.

Como disse alguém, recentemente, "muita criatividade nessa hora".

Friday, April 10, 2009

Aristóteles e a tragédia

Platão escrevia em forma literária e condenava a arte.

Platão não foi o único mestre de Aristóteles, felizmente. Antes de Platão, Aristóteles havia sido aprendiz do pai, médico do rei da Macedônia, Amintas, pai de Felipe.

Quando Platão ficou dois anos em viagem, Aristóteles estudou com um discípulo dele que era em essência mais um biólogo que um filósofo.

Por isso, era também um cientista, escrevia como cientista, mas valorizava a arte (por razões que não vem ao caso aqui).

Para Aristóteles, uma boa tragédia (aquela que cumpre a função catártica da arte), deve cumprir certos requisitos:

1. não deve começar nem terminar ao acaso;
2. todas as ações devem ter nexo causal;
3. não deve ser nem breve demais, nem longa demais;
4. a ação deve ser una;
5. deve ter peripécia, reconhecimento e catástrofe;
6. a ação deve se desenvolver entre amigos (ou seja, as personagens principais devem se conhecer);
7. o caráter deve ser coerente;
8. a beleza da linguagem e o uso de metáforas devem ser moderados para não distrair a atenção do espectador;
9. o desenlace deve resultar da estrutura do mito;
10. é preferível o impossível mas crível que o possível mas incrível.

O que estão fazendo os artistas, que não lêem Aristóteles?

Thursday, April 02, 2009

Anão e gigante

Schopenhauer faz menção à metáfora do anão e do gigante em suas obras: o anão enxerga mais longe apenas porque está sentado nos ombros do gigante. No caso, a vontade é o gigante.

Até onde posso me lembrar, ele não faz referência à fonte. Achei que a metáfora era dele.

Não é.

Então descobri que Newton disse a mesma coisa: só pôde chegar onde chegou porque era um anão sentado nos ombros de gigantes (seus antecessores).

Pensei que a metáfora era dele.

Não é.

Descobri que o primeiro a falar em anão e gigante foi um tal Honório de Autun, filósofo medieval (1090-1152), ligado à Escola de Chartres.

Penso que a metáfora é criação dele, copiada depois por Newton e Schopenhauer.

Se não, fica assim mesmo.

Assunto resolvido.

Friday, March 27, 2009

Baby Salomon

Descobri que Francis Bacon, o filósofo cientista, era chamado pela rainha Elizabeth de "Baby Salomon", Salomão bebê ("querido Salomão" é altamente improvável).

Parece que a rainha percebeu que o Baconzinho tinha grande inteligência e sabedoria.

Estava certa.

Entre outras façanhas, Bacon foi o primeiro a trabalhar na idéia que depois viraria geladeira.

Para preservar o bacon.

Thursday, March 19, 2009

Afogados na lama

Lendo Michael Walzer, Guerras Justas e Injustas, encontrei esta passagem, uma citação de Maquiavel (História de Florença):

Assim, a grande derrota dos florentinos em Zagonara: "nenhuma morte ocorreu [na batalha]", conta-nos Maquiavel, "exceto as de Lodovico degli Obizi e dois de seus homens, que, tendo caído do cavalo, morreram afogados na lama".

Fiquei me perguntando como três pessoas podem morrer afogadas na lama.

É verdade que a tecnologia, o aquecimento global e o aumento da população humana devem ter exercido algum efeito sobre a lama nos últimos séculos. A lama de antigamente devia ter mais de um metro e meio de profundidade.

Ou talvez o cuidado com o saneamento urbano, que na época de Maquiavel não existia, tenha impedido a lama de crescer. Ou a tenha feito encolher. Sei lá.

Dá prá imaginar um soldado caindo do cavalo, perdendo a consciência e morrendo afogado na lama. Mas três? Não é exagero?

Podia ser areia movediça, claro. Maquiavel talvez só conhecesse o termo "lama".

Mesmo assim, fiquei curiosa para saber como era a lama de antigamente.

Como meu tempo para cultura inútil infelizmente é zero, vou continuar sem saber.

Monday, March 16, 2009

Sócrates furioso

Antes tarde do que nunca.

Sócrates tinha uma paciência invejável, a julgar pelo testemunho de Platão e, claro, pelo modo como lidava com a mulher, Xantipa. Nem quando foi sentenciado, dizem as más línguas, Sócrates perdeu a paciência.

Exceto por uma vezinha só, momentos antes da morte, porque o mandaram calar.

Ninguém manda Sócrates calar, né?

Imagine. Se não escrevia, só podia filosofar falando.

No Fédon (63c), Críton explica a Sócrates que o homem responsável por lhe dar o veneno recomendou que não falasse muito, para não retardar a ação do veneno.

Sócrates respondeu, furioso:

- Dize-lhe que vá às favas! Ele que me dê o veneno duas ou três vezes, se for preciso!

Não foi preciso, mas devem ter descoberto que a fala não é tão poderosa assim.

Wednesday, March 11, 2009

Estratégia eficaz

"A afeição e ódio mudam a face da justiça; e quanto um advogado bem pago antecipadamente acha mais justa a causa que defende!" Pascal, Ensaios, 104.

A justiça é cega.

Tuesday, March 03, 2009

Monarquia universal

Eis os argumentos de Dante a favor da monarquia universal (leia-se: império romano revivido):

"É pertinente ao povo mais nobre governar os outros, assim como é justo e conveniente que o homem mais nobre comande os demais. Toda supremacia é uma honra, então toda supremacia é recompensa da virtude".

É bem verdade que o entendimento de política, no período anterior a Maquiavel, associa a vitória e o poder à dignidade moral, mas isto é um equívoco, porque ignora as relações políticas, sociais e o mero exercício da força como condições que estão na base do poder.

"O ser cujo crescimento recebe o auxílio de Deus é querido de Deus e legítimo. O Império Romano recebeu ajuda de milagres para chegar à perfeição. Portanto, o Império Romano foi legítimo e querido de Deus".

Não sei a que milagres Dante se refere, mas nenhuma das afirmações acima pode ser demonstrada. É fácil imaginar sua validade para quem acredita na primeira premissa, mas é exatamente por apresentar razões religiosas para justificar uma tese política que como teórico político Dante foi bom soldado.

"Todo aquele que deseja o bem da República procura o fim do Direito. O fim da sociedade é o bem comum. Quem visa o bem comum visa também o Direito. O Império Romano visava o bem comum, porque suas guerras e conquistas acabaram com as hostilidades. Logo, o Império Romano visava o Direito".

Esse argumento é péssimo, porque usa o sucesso do imperalismo militar como prova de sua moralidade. As guerras e conquistas do império romano podem até ter acabado com as hostilidades, mas pela força.

"Quem se propõe o fim do Direito intenta subir legitimamente. Assim, o povo romano, sujeitando o orbe, procedeu legitimamente".

Mesmo argumento do anterior.

"A natureza hierarquiza os seres conforme suas aptidões. O fundamento do Direito se liga a esta ordem. O povo romano foi destinado ao comando pela natureza, nos moldes do já havia dito Aristóteles sobre as diferenças sociais entre os homens".

É verdade que o império romano foi bem sucedido devido à sua habilidade militar, mas daí concluir que a natureza, que diferenciaria os seres humanos em mais aptos e menos aptos militarmente, é um pouco demais.

"As intenções divinas são ora evidentes, ora ocultas e se dão a conhecer pela razão e pela fé. Neste caso, a salvação e a justiça. Mas há juízos de Deus que a razão humana não pode conhecer senão pela revelação, pela oração e pela prova. A prova pode se dar por sorte ou por combate (duelos), de onde podemos tirar duas teses:
a) Deus se interessa mais pela luta coletiva que pela individual. O triunfo é conseqüência do juízo de Deus. O povo que triunfou na luta pelo Império do mundo triunfou por juízo divino. b) O que se adquire em duelo se adquire legitimamente, desde que o duelo aconteça no desejo de se fazer justiça. O povo romano adquiriu o Império por duelo. Portanto, o fez legitimamente".

A crença de que a vitória no duelo é expressão da justiça (porque a vontade de Deus atuaria, e esta vontade é pela justiça) é própria deste período, e de épocas posteriores. Vá lá. É uma falácia, mas obedece à lógica do período.

"Cristo nasceu sob o Império Romano. Se este Império não foi legítimo, também não o foi o nascimento de Cristo. Como o nascimento de Cristo foi legítimo, segue-se que também o foi o Império".

Mesmo que o nascimento de Cristo tenha sido legítimo, seja lá o que isso quer dizer, não se segue que o império sob o qual ele nasceu seja também legítimo.

"Se o Império Romano foi legítimo, o pecado de Adão não foi punido em Cristo. Ora, sabemos que o pecado de Adão foi punido em Cristo. Logo, o Império Romano foi legítimo".

Esse argumento também é um assassinato à lógica. Não há relação necessária entre a legitimidade do império e o pecado de Adão punido em Cristo, ainda que aceitemos as duas afirmações em separado.

Ergo...

A posteridade fez bem em esquecer o livro A Monarquia. Nada acrescenta.

Mas, cá entre nós, acho que devíamos esquecer o poeta também.

Monday, February 09, 2009

Paz, ainda que pela força

Estou lendo atualmente "Um só mundo; a ética da globalização", de Peter Singer, o que me leva à idéia de unidade.

Lembrei de Dante Alighieri e sua Monarquia. Sim, é o mesmo Dante da Divina Comédia, que também fez incursões pela filosofia política. Devia ter continuado escrevendo poesia, se é que o paraíso e o purgatório são tão interessantes quanto o inferno. Não sei dizer, porque desisti logo nos primeiros versos.

Bem, o que interessa é a Monarquia. A idéia de unidade política nunca abandonou a Europa, após a queda da Roma Ocidental. Vieram os bárbaros, a fragmentação em unidades políticas e econômicas, a ausência de governo central. Neste período, a Igreja alimentava o desejo de unidade pela coesão sob o poder espiritual. Com a formação de estados nacionais e o consequente declínio da Igreja, fosse interna, fosse externamente, a unidade perdeu-se de vez, mas não o sonho.

Frederico Barba Ruiva considerava-se descendente e herdeiro legítimo dos antigos imperadores romanos. Seu desejo era reviver o império romano. Mais de um século depois, na época de Dante, o imperador Henrique acalentava o mesmo sonho: transformar a Germânia em uma nova Roma.

Dante não somente admirava o imperador Henrique, como acalantava o mesmo sonho e a mesma convicção: só haverá paz quando toda a terra for governada por um único senhor. Literalmente.

Na sequência, apresentarei os argumentos de Dante a favor da monarquia universal.

Friday, February 06, 2009

Qual é o sexo do seu cérebro?

Ah, os testes! Nada como um bom teste online para me fazer deixar o trabalho e escrever novamente. A vida anda impossível com trabalho em excesso e muita, mas muita leitura.

Enfim. O teste agora é sobre o sexo de meu cérebro. Masculino, 7 pontos.

Será por isso que detesto poesia? :-)))

Saturday, January 17, 2009

Prédios moralmente deficientes

Lendo Adorno, descobri que ter uma finalidade prática é, no fim das contas, uma vergonha. Sobretudo, descobri que até prédios devem ser mais recatados e esconder sua verdadeira utilidade.

"Os prédios que sobrevivem do século dezenove e cuja arquitetura ainda revela vergonhosamente a utilidade como bem de consumo, ou seja, sua finalidade habitacional, estão recobertos do andar térreo ao telhado de painéis e anúncios luminosos; a paisagem torna-se um mero pano de fundo para letreiros e logotipos" (Adorno, Dialética do Esclarecimento, Indústria Cultural).

Sei não, mas acho que já gostei de Adorno.

Saturday, January 10, 2009

O ethos da ética

Há quem pense - e escreva a respeito, como Vazquez - que ethos significa, originalmente, caráter (ver Ética, publicado pela Martins Fontes, cap. 1).

Errado. Caráter é uma palavra que aparece na língua grega, e frequentemente na Poética de Aristóteles, mas significando neste caso temperamento, inclinação. Nada a ver com caráter moral. Este sentido só aparece com a filosofia moral, de que Sócrates é o pai, mas só se firma neste campo semântico mais tarde.

Ainda que eu tenha deixado passar alguma coisa (leia-se Platão), "caráter" certamente não é o sentido original da palavra ethos.

Há quem pense que ethos significa, originalmente, costume, hábito. Errado. Com certeza estes são significados da palavra na Grécia Clássica, mas nem de longe seu sentido original.

Então tá. Qual é o sentido original de ethos, afinal de contas? Em Homero, a palavra indicava o lugar onde os animais geralmente se abrigam. Não abrigos feitos pelo homem, porque dificilmente isso acontecia na ocasião, mas todo e qualquer lugar que os animais, quaisquer animais, usassem para se abrigar do frio, da chuva, dos predadores etc.

Como é que deste sentido original chegamos a caráter moral?

Bem, acho que sei, mas vou deixar isso para outra ocasião.

Monday, January 05, 2009

Meiguice primitiva, burrice primitiva

Já dizia o grande filósofo Jean-Jacques Rousseau, em um de seus vários momentos delirantemente românticos:

"Nada há de mais meigo que o homem em seu estado primitivo" (Segundo Discurso).

Será que Rousseau considera meigos os canibais? Ou será que nunca ouviu falar deles?

Acho pouco provável.

Mais esperto foi Kant, ao comparar os selvagens europeus com os selvagens dos outros. Disse que os selvagens europeus são mais civilizados porque se utilizam dos conquistados como mão de obra, soldados etc., enquanto os demais só pensam em comê-los.

Desperdício, né?

Thursday, January 01, 2009

Esqueça o ciúmes

Ouço tanto falar em "ciúmes", em "ter ciúmes de", que fiquei curiosa em saber o que vem a ser isso.

Será o mesmo que "ter saudades", "sentir vergonhas", "deixar-se levar pela invejas" ou "Deus de misericórdias"?

É que no Aurélio não existe "ciúmes", não com o artigo no singular, entende?

Então fiquei me perguntando se já é uma antecipação da novíssima reforma ortográfica.

Deve ser.

O Aurélio já era.