Saturday, May 31, 2008

De como se dar bem no mundo inferior

Comprei esta semana uma tradução do Livro dos Mortos, dos antigos egípcios (O livro egípcio dos mortos, E.A. Wallis Budge, Editora Pensamento). Não dá nem prá pensar em ler agora. Estou ocupadíssima com outras leituras. Em todo caso, sempre tive muito interesse em ler esse material, para saber exatamente do que se trata, e não resisti de folhear o livro. Encontrei títulos no mínimo curiosos, sob um olhar alheio. Eis alguns desses títulos:

- De como fazer retroceder o comedor do burro
- De como acabar com as matanças levadas a cabo no mundo inferior
- De como não perecer e tornar-se vivo no mundo inferior
- De como não sofrer corrupção no mundo inferior
- De como não entrar para o cepo
- De como aspirar o ar entre as águas no mundo inferior
- De como beber água no mundo inferior
- De como não ser escaldado com água
- De como sair à luz no mundo inferior
- De como receber os pés e sair sobre a terra
- De como viajar para anu (heliópolis) e ali receber um trono
- De como operar a transformação num falcão
- De como conduzir um barco no céu
- De como chegar ao porto
- De como fazer recuar o crocodilo que vem buscar as palavras mágicas da alma imortal no mundo inferior
- De como sair da rede
- De como não morrer pela segunda vez

Eu até tentei ler alguma coisa das passagens relativas a esses títulos, mas não entendi lhufas. Quem sabe, quando começar do começo, venha a entender.

Por ora, tudo isso me parece o que o sofista Lícofron disse da nobreza: "Excelência imaginária".

Wednesday, May 28, 2008

Hê pornê

Quem leu Platão sabe bem que os sofistas eram prostitutas do saber, já que vendiam conhecimento.

Mas, como bem observou o historiador Grote (e Bertrand Russell, em sua História da Filosofia), o que ninguém parece perceber é que um professor moderno, ao cobrar para ensinar, e sobretudo repetir que quem recebe para ensinar não passa de pornê do saber, está afirmando que ele próprio, o douto imitador de Platão, é uma prostituta (ou prostituto, tanto faz).

Se cobrar para ensinar é prostituição, então quem ensina sob pagamento é o quê, fio?

Lembrei daquele político americano que disse, indignado com um adversário: "Esse idiota devia ser escoiceado até a morte por um asno, e eu sou o indicado para fazer isso".

Bastante reflexivo, sem dúvida.

No sentido mais puro.

De espelho, quero dizer.

Saturday, May 24, 2008

Riso falso

O diabólico no riso falso está justamente em que ele é forçosamente uma paródia até mesmo daquilo que há de melhor: a reconciliação.

Theodor Adorno

Tuesday, May 20, 2008

Kantianamente falando

Kantianamente falando, tenho observado ultimamente a frequência irritante com que nomes próprios de pensadores têm sido transformados em advérbios por intelectuais.

Será que platonicamente falando, ou cartesianamente falando, ou hegelianamente falando, ou espinosianamente falando, ou husserlianamente falando, ou sartreanamente falando, ou aristotelicamente falando, ou o-raio-que-o-partamente falando, esse modo de falar adverbianamente de modo quer dizer que intelectualmente falando está-se falando de modo crítico, douto e reflexivo?

Ou melhor, será que kantianamente falando está-se falando doutamente, criticamente e reflexivamente... falando?

Será que academicamente falando ninguém pára pra pensar que adverbianamente falando está-se apenas repetindo chavões tolos e sem sentido, que negam justamente aquilo que popperianamente falando querem, adverbianamente falando, fazer parecer?

Mas sei lá. Vai ver que estou estupidamente falando e devo sim, inteligentemente falando, aderir à moda do advérbio de modo, ainda que isto signifique, rigorosamente falando, logicamente falando, rigorosamente nada.

Marcuseanamente falando, eis aí o fechamento do universo da locução.

Minimamente falando.

Sunday, May 18, 2008

Filosofia da brevidade

Comentei aqui, há algum tempo atrás, que Aristóteles afirmava terem sido os Lacedemônios (os espartanos) os inventores da comédia. A afirmação de Aristóteles me causou estranheza porque conhecemos os espartanos, descendentes dos dórios, como um povo que abolia o cultivo do espírito. Hoje, encontrei em Platão (Protágoras) a afirmação de que os Lacedemônios são grandes filósofos, e que a alma desta filosofia é a brevidade.

Ainda bem que é a filosofia da brevidade. Caso contrário, o termo "lacônico" terá de sair do dicionário.

Lacônico significa quem fala muito pouco ou quase nada (designava quem é oriundo da Lacônia, planície onde estava Esparta e, por essa razão, significa quem é monossilábico, já que os espartanos eram treinados para expressar-se com o mínimo possível de palavras).

Só não sei como é possível filosofar em poucas palavras.

Pensando bem, é possível. Os discípulos de Sócrates dialogavam com ele em pouquíssimas palavras:

Sim.

Exatamente.

Bem o dizes, ó Sócrates.


Que queres dizer?

Absolutamente correto.

É verdade.

Tens razão, Sócrates.

Perfeitamente justo.


Só não dá para divergir em poucas palavras. Neste caso não se trata de filosofar, e sim de dizer "não porque não". Ou seja, quando divirjo em poucas palavras, afirmo minha subjetividade, e é só (porque não posso argumentar somente com um "não"). Quando confirmo com poucas palavras, filosofo.

Faz sentido. Para os lacedemônios.

Friday, May 16, 2008

Problema com o problema

Li em Guthrie (Os Sofistas, Ed. Paulus, p. 233, em nota de rodapé para a palavrinha meritocracia):

"Temo que seja tarde demais para eliminar este termo bastardo e feio [meritocracia], substituindo-o por seu meio-irmão 'axiocracia'."

Filura de intelectual. Aliás, de intelectualíssimo, caso contrário isso não seria um problema.

Eu não sabia que há termos bastardos. Feios, vá lá. "Afoito" é uma palavra no mínimo engraçada. O mesmo para "Faminto". Há cacofonias também, como em "uma mala" e "ser do ente", assim como há expressões que simplesmente soam mal, como "bom dia". Mas bastardos? O que isso quer dizer?

Mas vá lá. Abaixo a meritocracia! Abaixo os termos bastardos! Abaixo o governo do mérito! Governo do 'axio' já! Ditadura do 'axio' já!

Fica muito mais bonito dizer 'axiocracia", ainda que seja 'cracia', 'kratos', governo, do mesmo jeito. Mas que sejam abolidos os termos feios!

Isso tudo é muuuuito importante!

E tenho dito.

Sem mérito algum.

Wednesday, May 14, 2008

Morte por excesso de anéis

Quem é vivo morre. Morre-se cedo, morre-se por acidente, doença, "causas naturais", mas nunca ouvi falar que alguém pudesse morrer por excesso de anéis. E não é que um papa morreu assim?

Pesquisando sobre Rodrigo Bórgia, descobri que o papa Paulo II, Eugênio Barbo, cujo papado durou de 1464 a 1471, morreu em decorrência de uma pneumonia causada pela quantidade exagerada de anéis que usava em clima frio.

Devíamos elevá-lo à categoria de "mártir dos anéis", ao menos pela originalidade. É difícil superar essa marca.

Talvez não. Talvez deva ser o mártir dos anéis pelo excesso de zelo com a tradição. Também é difícil superar essa marca.

Sunday, May 11, 2008

Richter , ou a arte da provocação

Ouvi outro dia, a respeito dos filmes de Hans Richter, precursor do cinema de vanguarda, o argumento de que a verdadeira arte é a que fica. A prova de que o cinema de Richter tem valor reside no fato de que até hoje nos sentimos afetados por ele de algum modo, já que até hoje falamos sobre ele e elaboramos teses e dissertações acerca de seus filmes (ainda que em círculos restritos).

Bem, eu faço uma outra leitura dessa "permanência" de Richter no cenário intelectual: nós ainda falamos sobre ele porque até hoje não compreendemos o que quis dizer (se é que quis dizer alguma coisa). Continua obscuro. Logo, continua instigante.

A afirmação da relevância com base na duração é legítima, sem dúvida. Cristo está aí até hoje, assim como Buda, Maomé e Elvis Presley. Mas não creio que o argumento da relevância histórica possa ir além disso e permitir inferir dela a qualidade do que é avaliado. Isto não significa, claro, afirmar que o cinema de Richter não tem valor. A ressalva é quanto à natureza da defesa deste valor.

Thursday, May 08, 2008

Parmênides critica Sócrates

Platão conta, no diálogo Parmênides, que o próprio e seu discípulo Zenão encontraram-se com Sócrates. O filósofo ateniense, para se opor à tese de Parmênides defendida por Zenão, apresenta a sua Teoria das Formas.

A teoria é inaceitável para Parmênides porque supõe a unidade e a multiplicidade (ou a contradição, ainda que apenas para o múltiplo).

Eis o primeiro argumento do filósofo de Eléia:

Se as coisas particulares participam da forma da beleza, ou da semelhança, ou da extensão, elas são ou bonitas, ou semelhantes, ou extensas. Cada coisa particular deve receber ou o todo da forma de que participar, ou uma parte. De um modo ou de outro, a forma se torna múltipla. No primeiro caso, por multiplicação. No segundo, por divisão. Em qualquer dos casos, não será una.

A resposta de Sócrates, embora tímida, é ótima e se resume na afirmação de que as formas são paradigmas, não coisas sensíveis, que podem ser divididas ou multiplicadas.

Ow, Parmênides, quer medir idéia com esquadro?

O mais interessante no diálogo entre Sócrates e Parmênides é a imagem do jovenzinho promissor, mas ainda ingênuo e incipiente, apresentando problemas para gente grande pensar. Lembrei-me de Cristo conversando com os doutores do templo.

Monday, May 05, 2008

Apareceu o oportunismo

Uma tal Teresa de Lisieux é uma santa esperta. Começou a aparecer poucos dias antes do ataque terrorista ao World Trade Center. Alguns moradores de Nova Iorque garantem ter visto a santa na noite de 4 de setembro e nas cinco noites seguintes, até o dia do ataque, avisando que coisas terríveis iriam acontecer muito em breve.

Cá entre nós: de que vale a santa aparecer para dizer que coisas horríveis vão acontecer? Quem é que pode se precaver com um aviso tão vago assim?

Bem, eu vou participar da festa e prever que coisas terríveis vão acontecer brevemente.

Se for um terremoto em qualquer parte do mundo, está valendo.

Se for um ciclone, igualmente.

Um desabamento? Acertei.

Um tsunami? idem.

A morte de uma figura da política internacional? Acertei.

Um ator? Uma atriz? Um cantor? Acertei também (pode ser terrível, sim. Até hoje não superamos Elvis).

Como disse, a santa é esperta. Sua previsão é infalível.

Sobretudo, porque foi feita dois anos depois do 11 de setembro.

Saturday, May 03, 2008

Relevo selvagem

"Quem quereria denominar sublimes também massas informes de cordilheiras amontoadas umas sobre outras em desordem selvagem com suas pirâmides de gelo, ou o sombrio mar furioso etc.?"

Kant, Crítica da Faculdade de Julgar, 26.

Thursday, May 01, 2008

Diversão não

"As pessoas querem divertir-se. Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu tempo livre, eles só quererem alívio simultaneneamente do tédio e do esforço." (Theodor Adorno, Sobre a Música Popular)

A julgar pelo que Adorno diz no parágrafo acima, querer diversão, querer alívio do tédio e do esforço é condição de impossibilidade de apreciação da arte.

A medida de avaliação da arte (se boa ou não) deve ser externa a ela?