Saturday, June 30, 2007

Meu reino por um cavalo

Descobri por que Ricardo III, na peça de Shakespeare, grita ao final: "Meu reino por um cavalo! Meu reino por um cavalo!"

Não, ele não está desesperado para encontrar um cavalo e fugir da morte certa.

Não, de jeito nenhum.

Nem mesmo está disposto a entregar seu reino para garantir a vida.

Não, não.

Também não é o caso de Ricardo III se aperceber, finalmente, de que o poder, pelo qual matara e torturara, não é nada diante da iminente perda da vida.

Absolutamente, não.

O que Ricardo III quer dizer é bem mais simples: ele apenas se lembrava de como Dario (ou Xerxes) conquistou o poder: fazendo seu cavalo relinchar na hora certa.

O caso todo é de uma simplicidade atroz: quando da morte de Cambises, filho de Ciro (que era filho de outro Cambises), não havia sucessor natural. Então decidiu-se que seria rei aquele cujo cavalo relinchasse primeiro.

É sério.

Bem, Dario (ou Xerxes) deu um jeito para que seu cavalo fosse o primeiro a relinchar.

Como ele fez isso, não conto não. Leia Heródoto.

A referência? História III, 85.1 e seguintes: "Acerca do poder real, deliberaram que aquele cujo cavalo primeiro relinchasse ao nascer do sol, quando todos eles estivessem montados, nos arredores da cidade, esse deteria nas suas mãos o poder real".

Wednesday, June 27, 2007

Hipomaníacos

Você sabe o que é hipomania? Não?

Heródoto explica: trata-se de mania por cavalos, de que os persas padeciam.

Deve ter sido por isso que eles conquistaram a Tessália tão facilmente.

Monday, June 25, 2007

Saída pela tangente

Estou lendo Heródoto, historiador grego, considerado o pai da história. Infelizmente, só encontrei os livros 1 e 3. É pena, já que são nove, ao todo. Mas é um começo.

Diz Heródoto (História I, 137-1) que os persas se orgulhavam de nunca ter acontecido, entre eles, de alguém matar o pai ou a mãe. Este tipo de crime era considerado inadmissível, por ser contrário à natureza. Um pai jamais poderia morrer pelas mãos do filho.

Amor filial? Respeito às tradições? Obediência à lei? Receio da danação eterna?

Que nada.

O segredo, segundo o historiador, está na investigação do crime: quando acontecia de alguém matar o pai ou a mãe, a investigação - criteriosa, sem dúvida - revelava que o assassino era, na verdade, filho ilegítimo ou suposto.

Como dizia o sábio Shakespeare, "tudo está bem quando bem acaba".

E Júlio César conclui: "amém".

Sunday, June 24, 2007

Purgatório para maus tradutores

A prática dos monges medievais de alterar os textos gregos que traduziam é bem conhecida. Esta é uma das dificuldades com os livros de Aristóteles: há várias passagens cuja autenticidade é motivo de disputa.

O curioso é que os monges eram ameaçados com o purgatório, caso fizessem alterações no texto ou suprimissem passagens. Mesmo assim, a prática se manteve.

Vai ver que monge não acredita em purgatório.

Saturday, June 23, 2007

Obesos e famintos

Li, em algum lugar, que há mais obesos no mundo que famintos.

Ué, há mais gente nos Estados Unidos que em toda a África?

Friday, June 22, 2007

Articulações da alma

Definitivamente, Rousseau e Platão são filósofos muito divertidos. Veja esta passagem do Timeu:

"Os ossos que continham a alma, ele [o deus] envolveu em menor quantidade de carne, e os que por dentro eram menos animados, com camada espessa e abundante. Contudo, nas articulações dos ossos, onde a razão não via necessidade de acumular muita carne, colocou menos, para não dificultar a flexão dos membros nem deixar enrijado o corpo e com os movimento duros, e também com o propósito de evitar que a rigidez resultante da presença de muitas camadas superpostas de carne provocasse insensibilidade do corpo, enfraquecesse a memória e tornasse obtusa a inteligência" (Timeu, 74a).

Então está decidido: o segredo da inteligência é a pouca carne. Por isso os bois são bois e as vacas são vacas.

A teoria só não é capaz de explicar porque um esqueleto não tem inteligência, mas isto é apenas um detalhe.

Thursday, June 21, 2007

Alpinista intelectual

E por falar em Timeu, Sócrates afirma, a respeito desta criatura:

"O nosso Timeu (...) não alcançou os mais altos picos do conhecimento filosófico" (Platão, Timeu, 20a).

Puxa, ainda bem!

Nos altos picos o ar é rarefeito.

Tuesday, June 19, 2007

Atlantidades

Ah, Platão! O arauto (não o pai, ou o criador) das mais belas mentiras que a humanidade já contou.

É verdade que ele repete mais do que inventa, mas é sem dúvida o grande panegirista da vida filosofante bem morrida.

Ficou confuso? Liga não. É que a coisa é complicada mesmo.

Bem, vamos ao que interessa. Já que estou falando de Atlântida, fui buscar o livrinho para bem citar a passagem sobre a cidade perdida. Na verdade, Platão faz referência a Atlântida no Timeu e no Crítias, mas vou ficar com o Timeu. A passagem é longa demais, então não vou copiá-la aqui. Procure no Timeu, a partir de 21a.

Trata-se de um diálogo entre Sócrates, Timeu e Crítias, em que este relata o que ouviu de seu avô Crítias, que lhe contara a história relatada por um tal Sólon.

Confuso? Então explico novamente: Sólon é um reformador político do século VI a.C., (aquele que vestiu os soldados de mulheres para ganhar uma guerra, lembra?). Pois é, Sólon, um dos sete sábios do passado, era parente de um tal Drópides, a quem contou sobre Atlântida. O tal Drópides contou a história ao filho, Crítias, que a contou ao neto, o Crítias do diálogo, que a conta a Sócrates, que já havia feito referência a Atlântida.

Ainda está confuso? Sossegue. Nada na vida é fácil.

O importante é que a história contada por Platão foi contada por Crítias a Sócrates, que já a contara antes ao próprio Crítias, que a ouvira de seu avô Crítias, que a ouvira de seu pai Drópides, que a ouvira de Sólon, que jurava de pé junto ser tudo verdade.

Continua confuso?

Então faça o seguinte: esqueça Atlântida. Garanto que nem vai sentir falta.

Monday, June 18, 2007

Que língua falavam os Atlântidas?

Não sei, e na verdade nem quero saber. Seja o que for, será mais uma dessas bobagens que as pessoas inventam, esquecem que inventam e começam a achar que é verdade só porque é interessante, ou porque explica alguma coisa.

De todo modo, encontrei um site em que há um estudo sobre a possível língua falada pelos habitantes de Atlântida. Não tive paciência para ler tudo, porque é mais uma dessas inutilidades complexas, então não cheguei a saber que nome fictício o autor do estudo dá à suposta língua que eles falavam.

Como é que pode? Tá certo que Schliemann encontrou Tróia quando todo mundo achava que era só lenda, mas daí a estudar a língua falada pelos atlântidos antes de existir qualquer vestígio da existência dessa civilização é um pouco demais, não é não?

Mas vamos lá. Também tenho uma tese sobre o assunto.

Platão se referiu, no Timeu, a uma cidade que teria sido destruída em tempos remotos. Aceitando que ele fazia menção à história e não a uma lenda, devemos aceitar também que Atlântida era grega. Portanto, a língua falada por este povo devia ser uma variante primitiva do grego, talvez com uma influência do dialeto da Creta minóica, ou do copta (por causa do comércio com o Egito, via Creta), ou ainda da língua dos hititas (provável origem dos pelasgos, os primeiros povos a habitar Creta). Ou talvez ainda tenha algo a ver com os fenícios, sei lá. Eles moravam perto de Atlântida e gostavam do mar. Logo, devem ter ensinado os atlântidas a escrever. E a falar.

Bem, fosse como fosse, até agora tudo o que sabemos sobre o assunto não passa de blá-blá-blá. Rebuscado, mas é só blá-blá-blá. Como este site.

Saturday, June 16, 2007

Crise de criatividade

O conhecimento profundo que tenho de minha total ignorância no que diz respeito à magia me leva a supor que, na novela Eterna Magia, as duas irmãs se engalfinharão em uma briga de raios ultravioleta, ao final. À distância, claro, porque toda magia que se preze deve ignorar a física.

Não acompanho a novela, mas nem é preciso. Basta assistir às chamadas e já se tem toda a história: duas descendentes de bruxas disputam o mesmo homem, e isso é tudo. Ao final, provavelmente depois da briga de raios, um grande segredo, guardado a sete chaves, solucionará todos os conflitos.

Alguém se atreve a apostar comigo?

Fico pensando o que fazem esses autores de novelas, filmes etc., que não lêem Aristóteles. Tudo o que é preciso saber para contar uma boa história está na Poética: a trama deve ter contato com a realidade; as personagens devem ser pessoas do dia-a-dia. Caso contrário, não há identificação do público. Mas não. Lá vem estórias de bang-bang com personagens e situações absolutamente irreais; histórias de bruxas com sobrenome irlandês, anjos, reencarnação, mutantes e bobagens de todo tipo.

Ow, assim não dá. Até a fantasia tem de ser bem contada.

Thursday, June 14, 2007

Tirania autêntica

Os textos de Aristóteles são repletos de comentários sobre personalidades e eventos de sua época e de épocas passadas. Na Política, 1277a, ele faz menção a um tirano, Jáson, que dizia sentir-se faminto quando não exercia a tirania.

É vero. Em uma tirania, quem se alimenta bem é o tirano.

Tuesday, June 12, 2007

Cavalos e... cavalos

Górgias de Leontini, o sofista, teria dito que os pilões são objetos feitos pelos artífices de pilões, e os cidadãos de Larissa são feitos pelos governantes (Aristóteles, Política, 1276a).

Larissa ficava na região da Tessália, e os tessálios não faziam outra coisa senão cuidar de cavalos. Esta pode ser a razão do comentário, mas o curioso é que, segundo reza a lenda, Górgias morreu exatamente nesta cidade, com cerca de 120 anos.

Talvez tenha chegado a essa idade porque, segundo os contemporâneos que o citam, Górgias passou a vida rindo de tudo que acontecia à sua volta. Pode-se incluir aí o apreço dos tessálios por cavalos.

Friday, June 08, 2007

Morre Richard Rorty

Morreu hoje, aos 75 anos, um dos principais filósofos da atualidade, Richard Rorty.

Vá pela sombra, Rorty.

Thursday, June 07, 2007

Natureza humana

E por falar em natureza a serviço do homem, eis a afirmação de Aristóteles:

"Se, portanto, a natureza nada faz sem uma finalidade ou em vão, necessariamente a natureza fez todos os animais por causa do homem" (Ética 1256b-24)

Tuesday, June 05, 2007

O fantasma de Ana Bolena

Lembra-se de Ana Bolena, a segunda das seis esposas de Henrique VIII, mãe da rainha Elizabeth I, acusada de adultério e executada em 19 de maio de 1536, para que o rei pudesse se casar novamente?

Pois é, ela morreu mesmo, e virou fantasma. Está assombrando os ingleses até hoje, em uma casa em Norfolk, Blickling Hall.

Por que exatamente esse lugar? Ah, isso é fácil: Brickling Hall foi construída exatamente no mesmo lugar da antiga casa em que Ana viveu, antes de se tornar rainha.

Ela chega todo ano, no aniversário de sua morte, em uma carruagem conduzida por cavalos sem cabeça e cocheiro sem cabeça (Ana foi decapitada e obviamente ainda não superou o trauma).

Prá que tudo isso, né? Devia, isto sim, atormentar o marido no além.

Será que Elizabeth foi visitá-la?

Sunday, June 03, 2007

Progresso moral (2)

No post anterior, comentei que não concordo com a idéia de que há sempre um progresso moral da humanidade. Concordo que haja, mas não que haja necessariamente, de modo linear, sem retorno à barbárie.

Hoje, ocorreu-me que deixei escapar um ponto importante. Para Kant, a natureza obriga, mais dia menos dia, à paz perpétua. A coisa toda é tão óbvia, que fiquei por entender o cochilo. Trata-se, tão somente, do impulso natural à auto-sobrevivência. Agora o argumento já faz mais sentido para mim: numa situação de guerra, corre-se o risco de aniquilamento. Diante desta possibilidade, a natureza se encarrega, por via do instinto de auto-sobrevivência, de colocar os homens (as nações, no caso) em disposição favorável à paz, mesmo que isto signifique a renúncia a uma certa liberdade de ação. Fala mais não o interesse imediato, mas a segurança.

Bem, entendi. Não tenho como escapar deste argumento, exceto pela afirmação de que ele (o argumento) supõe que os homens ajam racionalmente: que, diante do possível aniquilamento, sejam capazes de fazer um cálculo de consequências elementar e que dele resulte a escolha pelo melhor.

Mas será assim, necessariamente?

Há algo mais contingente que a natureza humana?

Continuo matutando sobre o assunto. Talvez consiga encontrar um ponto fraco na tese, porque ela não me satisfaz.

Se não, talvez pare de brigar e me renda à lógica kantiana.

Friday, June 01, 2007

Progresso moral (1)

A tese positivista (ainda que avant la lettre) de que a humanidade caminha sem desvio para o progresso moral, penso, tem a ver com a afirmação de Aristóteles de que todas as coisas tendem naturalmente para o melhor. Esta tese é fundamental para Hegel, mas é em Kant que me interessa particularmente. Em A Paz Perpétua, que já mencionei aqui várias vezes, há uma longa passagem sobre o modo como a natureza percorre esse caminho. Um dos argumentos em favor da paz duradoura entre os Estados é que, se não a aceitarmos agora, mais cedo ou mais tarde seremos obrigados a aceitá-la. Claro, se recusarmos a idéia de paz duradoura, o único resultado possível é a guerra. A guerra é insuportável, porque gera consequências de toda ordem. Logo, se houver uma guerra duradoura entre as nações, elas serão forçadas a considerar novamente uma negociação que resulte na paz, mas que tenha em vista a manutenção deste estado.

Certo, mas a premissa que está por trás desta afirmação é a de que o homem tende a ser mais racional. Isto é, a humanidade tende ao progresso moral. Por isso, diz Kant, falar em paz perpétua não é utopia.

Minha dificuldade é justamente esse pressuposto. Não se pode negar que os Estados, as leis e a humanidade estão mais racionais que no passado. Defender esse ponto de vista é fácil: basta citar o que as gerações anteriores consideravam normal e que julgamos hoje ser inaceitável (como a tortura, que na Idade Média era o único meio legítimo de extrair uma confissão; como o trabalho infantil, o trabalho escravo, o papel da mulher na sociedade etc etc). Ainda existe tortura? Claro, mas hoje ela é um crime. Ainda existem assassinatos por ciúme? Claro, mas quem é capaz de defendê-los? As leis estão sim mais racionais e, sob certos aspectos, nós também (é claro que isso não tem nada a ver com ciência e misticismo, o que não me interessa discutir agora).

Por outro lado, isto significa dizer que não é possível o retorno à barbárie. Isto é, que a humanidade caminha inexoravelmente para o melhor. Com esta premissa, não posso concordar. É certo que, se considerarmos um único indivíduo, sem dúvida na idade adulta ele é mais racional que quando bebê (considerando uma compreensão de mundo mais abrangente, a percepção do outro etc). Mas um indivíduo não pode, por doença ou acidente, retornar à idade mental de um bebê? É claro que pode. Será que algo parecido não pode acontecer com a humanidade? Por exemplo, uma guerra de proporções catastróficas, que nos faça duvidar da eficácia da razão na solução de nossos problemas e nos faça aceitar qualquer coisa, desde que nos dê uma sensação de conforto, ou a alienação pelo misticismo, ou pela dispersão de todos os valores?

Talvez este seja o momento em que Kant diria: é hora de voltar a falar em paz. Não sei. Talvez seja hora de falar em cataplasmas, apenas.